Lucas 20/07/2023
A história mais conhecida da humanidade recontada não por um ateu, mas por um humanista
Cristão, agnóstico, ateu, judeu, muçulmano e assim por diante: nenhum segmento, credo religioso ou cético desconhece a história (por vezes fabular) de Jesus Cristo, filho de um carpinteiro e de uma dona de casa. A sua origem espiritual, seus ensinamentos, valores e eventuais contradições habitam o imaginário popular há dois milênios através das chamadas "Boas-novas", os Evangelhos, que no cânone oficial da Igreja Católica Apostólica Romana são os quatro primeiros livros do Novo Testamento da Bíblia.
A trajetória terrena de Jesus Cristo, a qual realmente existiu de acordo com fortes evidências históricas documentadas, por mais que seja conhecida em muitos pormenores difundidos em textos bíblicos (que, importante, são textos de fé, não de jornalismo biográfico), gera inúmeras discussões: o que é verdade ou não e o que foi escondido pela liturgia oficial sobre Jesus Cristo são e sempre serão grandes mistérios da humanidade. Prova disso são os vários escritos não aceitos pelo cânone oficial da Igreja Católica, os chamados evangelhos apócrifos. Estas divisões de pensamento sobre quem foi Jesus ou sua renegação definem até mesmo a geopolítica mundial atual, especialmente nas rivalidades existentes no Oriente Médio.
Coube ao português José de Sousa Saramago (1922-2010) tingir com um verniz literário tal tema, previamente revestido dos mais variados enfoques. O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) é a mais impactante obra do autor, vencedor do Nobel de Literatura de 1998. Ateu assumido, a publicação da obra trouxe um enorme burburinho no conservadorismo católico, muito presente em Portugal desde sempre. Ainda hoje, suas linhas podem incomodar indivíduos incapazes de diferenciar fé de boa literatura. Mas não há argumento que não seja o de discordância dogmática capaz de promover uma crítica mais séria ao livro: Saramago humaniza a vida de Jesus Cristo, seus familiares e conhecidos, legando ao mundo uma rica variação da mais famosa das histórias da humanidade.
Se a vida de nós todos começa na concepção, com Jesus não poderia ser diferente, e é desse acontecimento que se percebe a humanização do personagem: enquanto que os evangelhos tradicionais trazem a Deus o papel de único pai de Jesus, mantendo, apesar da gravidez, imaculada Maria, para Saramago Jesus foi concebido da forma mais tradicional (e humana) possível, a partir da união de um casal, o já citado carpinteiro José e Maria.
Citar outras diferenças entre a Bíblia e O Evangelho Segundo Jesus Cristo seria deselegantemente tonto, pois o fascínio do livro está justamente nesse ar de imprevisibilidade que a vida de Jesus adquire nas linhas de Saramago. De inédito, a obra do escritor português amplifica a oficialmente ignorada adolescência de Jesus, a qual abriga as mais diversas teorias. Adicionalmente, Jesus nem é o protagonista do "seu" evangelho no primeiro terço de suas linhas: este papel cabe a seu pai, José, com suas dúvidas, medos e arrependimentos. José, que possui um papel injustamente secundário nos textos bíblicos oficiais, desenha um arco narrativo lindíssimo, que termina numa das mais emocionantes cenas da obra. Não à toa, ele passa o bastão ao seu filho primogênito. Então com treze anos, Jesus começa a cumprir a sua missão por aqui, mesmo que ele se pergunte frequentemente qual tarefa é esta, num (outro) claro sinal de humanidade dado por Saramago. Afinal de contas, quem nunca se sentiu em dúvida sobre o que fazer da vida, especialmente quando se está na adolescência?
Praticamente todas as "fases" da vida do Jesus de Saramago são permeadas por isso: as incertezas humanas, que nos levam de um lado para outro sem que tenhamos poder de reação ou comando. O Cristo aqui representado é um personagem por vezes cético, renegado e até humilhado, mas muito inteligente e temente a Deus. Acima de tudo, um homem, na plenitude desse substantivo, que somente aos poucos (e por interferências divinas) vai descobrindo seu papel no mundo. Para Saramago, não basta descrever Jesus Cristo como um humano: é preciso que ele seja como qualquer um de nós, com as mesmas dúvidas e medos, capaz de se desentender com a família, que ama uma mulher, que não se importa de reclamar dos fardos pesados nas quais é designado e, nem por isso, deve ser condenado por agir assim.
Talvez o "personagem" mais cutucado pela escrita de José Saramago seja aquele de cuja crença, travestida dos mais diversos nomes ao redor do planeta, tenha o alcance mais universal da humanidade: Deus. A entidade divina de Saramago é aquela do Antigo Testamento, um Deus por vezes cruel, que "impulsiona" massacres, assassinatos e muitas outras barbaridades. Não à toa, é frequente que no livro o autor questione duramente os sacrifícios e oferendas, que visavam a purificação ou perdão mediante a morte e incineração de animais como cordeiros e pássaros. De contundente, é nesse ponto que O Evangelho Segundo Jesus Cristo vai mais longe na provocação aos que são mais conservadores em matéria de fé. De resto, especialmente Jesus e suas andanças, há um cenário bem desenhado de lendas já conhecidas ou que a Bíblia não esconde de todo (como a possível existência de irmãos de sangue de Jesus, mencionada no Evangelho de Marcos).
Um Deus assim diante de um Jesus não tão conformado com o seu destino é um bom embrião para cenas literárias maravilhosas e Saramago não perde essa oportunidade: os encontros entre Deus, Jesus e a presença misteriosa de uma entidade obscura (o demônio) são momentos belíssimos e grande parte deste encanto, inegavelmente, se associa ao estilo de Saramago, que prioriza uma oralidade não vista em nenhum outro lugar. Um fascínio quase doentio por vírgulas, com suas frases enormes sem pontuação, diálogos sem separações gráficas e reflexões práticas e inesperadas fortalecem esse ambiente lúdico que permeia todo o livro. E se isso pode parecer estranho (eu recomendo que o primeiro contato de um leitor com José Saramago não seja n'O Evangelho Segundo Jesus Cristo), basta que a leitura seja feita em voz alta que tudo parece ganhar um contorno sólido (sim, essa tese, tão popular quando se fala do autor, é verdadeira e deve ser considerada pelo leitor).
A famosa passagem citada no parágrafo anterior, do encontro de Jesus, Deus e o Diabo é, narrativamente falando, o ponto alto da obra de Saramago. Ali, têm-se boa parte das razões que fazem O Evangelho Segundo Jesus Cristo um livro memorável, porque as questões debatidas pelos três abarcam os pilares da Igreja, seja em seus simbolismos eternos como também em suas hipocrisias. Nada mais pode ser dito, mas este capítulo, além de encaminhar a narrativa para o seu desfecho, torna a trajetória de Cristo mais consciente da sua missão. Mas num sentido prático isso, contudo, reforça uma percepção particular: o final do livro, por mais que seja obviamente previsto (e se relacione lindamente com a abertura da obra), pareceu-me acelerado em demasia. Muita coisa que está nos evangelhos "oficiais" poderia ser mais bem abordada por aqui, não como fio condutor da narração, mas com intuitos lúdicos ou literários. Isso não ameniza o encanto das linhas finais, pois o último parágrafo do livro, por exemplo, é totalmente inesquecível.
Nada pode desabonar O Evangelho Segundo Jesus Cristo. A obra-prima de José Saramago é a história mais famosa da humanidade despida de auras místicas e vestida com uma roupagem humana, no sentido mais puro e por vezes contraditório desse termo. É também um compêndio pessoal do seu autor: o humanismo de Saramago, comprovado em dezenas de entrevistas suas (inclusive em solo brasileiro, como as várias passagens que ele teve no Roda Viva, da TV Cultura), transcende o seu ateísmo por vezes injustificadamente criticado. Para sermos humanos, não precisamos assumir um lado religioso e por ele lutar, com fé, até o fim dos nossos dias; basta termos humildade, respeito e capacidade construtiva. O Jesus Cristo de Saramago é assim, e, por isso, a abordagem com a qual Saramago o tratou só engrandece este personagem e sua presença universal ao longo dos tempos.