Arsenio Meira 20/09/2013
O Heroi Silencioso
Numa época onde os altos índices de violência, a intolerância, os discursos políticos (insanos) e a desigualdade social beiram o absurdo, a arte parece investir cada vez mais nos extremos para atrair os olhares.
São exposições de tripas humanas plastificadas, fotos reunindo dezenas de pessoas nuas, filmes de catástrofes, serial killers e invasões alienígenas, livros sobre conspirações históricas, códigos e escadas rolantes, e choques culturais entre o ocidente e oriente.
O que os adeptos do denuncismo a base do tratamento de choque não sabem, porém, é que a duração de um tapa na cara não passa de alguns minutos, enquanto um simples gesto pode ser mais perturbador. O livro Bartleby, o escriturário, escrito por Herman Melville, é um exemplo disso.
O mítico autor de "Moby Dick" conta a história do escrivão Bartleby, através de um advogado de Wall Street, que o emprega como copista.
Apesar do escritório ter outros dois copistas não menos excêntricos, que se alternam diariamente nos períodos de mau humor, o narrador concentra o foco em Bartleby. Ele inicialmente parece ser um profissional capaz e reservado. Nada se sabe sobre ele, onde trabalhou, de onde veio, onde mora, se é casado, se tem amante, melhor amigo, hobby, se tem família ou mesmo qual sua idade.
Até certo momento, isso desperta curiosidade, mas não importa, porque quieto no seu canto, ele faz o seu trabalho de maneira eficiente e faz do seu silêncio uma arma para não incomodar os colegas.
O pacato Bartleby passa a ser considerado um problema depois que resiste a idéia de checar uma cópia que ele mesmo fez. Sem qualquer constrangimento, simplesmente diz: prefiro não fazer. E só. Não explica o porquê, nem inventa desculpas. Apenas refuta a tarefa, sem delongas
A situação se complica ainda mais quando Bartleby anuncia, de súbito, que prefere não mais trabalhar. Ainda assim, ele continua no escritório, em pé, olhando para a parede de tijolo do prédio vizinho.
Sem ver nas negações um indício de protesto, nem de desafio a sua autoridade, o advogado sente-se desarmado para lidar com a melancolia do silêncio de Bartleby. Por ser ele quem conta a história, a reação dos leitores acompanha os passos do narrador.
Primeiro vem a curiosidade, depois a solidariedade e por fim a impotência seguida de rejeição. O escriturário endoidou, pensamos todos.
Aos poucos, Melville vai pingando gotas de mistério em torno de Bartleby. O narrador não o vê comendo nada além de balas de gengibre, depois descobre que ele nunca sai do escritório e dorme por lá mesmo. A essa altura, não me causaria espanto se Melville fizesse surgir um oceano, e na paisagem o isolamento de uma embarcação naufragando contra si própria.
A excentricidade do copista, porém, torna-se ainda mais intrigante quando ela se mistura com a admiração do advogado pelo funcionário. Ele tenta ajudar, compreender as razões de Bartleby, mas não consegue romper a solidão do funcionário.
Ao perceber que a presença dele começa a incomodar seus clientes e colegas, o narrador começa a tomar providências. Manda o copista embora, oferece ajuda financeira, implora, se exaspera, mas nada adianta.
Até que ele próprio, enfim, resolve mudar o endereço do escritório. Bartleby permanece em sua cruzada solitária, mas sem qualquer indício de maldade.
Com sutileza, o gênio de Herman Melville constrói Bartleby como a antítese de uma época onde os valores materiais e o trabalho adquiriram status de indispensabilidade e a ganância o maior dos atributos.
Seu personagem, sem nem precisar falar, consegue inverter essa lógica e coloca os leitores diante de um dilema paradigma quem tem a vida mais absurda?
Em meio aos monstros, pastores horrendos, pedófilos, escroques de gravata, terroristas e assassinos, a renúncia silenciosa do inofensivo Bartleby é a que causa mais destruição.