Victor Dantas 19/09/2020
É mesmo para todos?
“O Sol é Para Todos” foi a estreia da escritora norte-americana Harper Lee, publicado originalmente em 1960, e tendo ganhado o prêmio Pulitzer no ano seguinte.
O livro é considerado um dos maiores clássicos do século XX, e o livro mais aclamado no EUA, sendo leitura obrigatória nas escolas norte-americanas.
Aproximadamente a obra já vendeu mais de 40 milhões de cópias mundialmente.
Em 2015, o livro ganhou uma continuação, “Vá e coloque um vigia”.
A história se passa nos 1930 e gira em torno da família Finch, composta pela Scout, seu irmão Jem e seu pai Atticus. Quem narra a história, é a Scout.
A família de Scout vive numa cidade fictícia chamada Maycomb (inspirada na cidade de Monroeville), no interior do Alabama, estado da região sul dos Estados Unidos.
É de conhecimento geral que a formação sul dos EUA, carrega consigo um histórico escravocrata e de conservadorismo da elite branca. Uma região que foi palco de intensos e sangrentos conflitos étnico-raciais, que perduram até os dias de hoje.
Dito isso, a família de Scout é majoritariamente branca, e vive em Maycomb, uma cidade que é segregada entre negros e brancos, ricos e pobres, bairros de brancos e bairros de negros.
É a partir desse contexto qual os personagens estão situados, que a autora desenvolve o principal conflito do livro: um julgamento de um caso de estupro em que a vítima foi uma mulher branca, e o agressor teria sido um homem negro, Tom Robinson.
Atticus, o pai da Scout, tido como o advogado da cidade, é delegado a cuidar do caso, no entanto, em vez de representar a vítima, Atticus irá representar o suposto agressor, Tom Robinson. E temos aqui mais um conflito: um homem branco, em defesa de um homem negro.
Como você deve imaginar, teremos um choque cultural e étnico que vai ser presente na trama toda, além disso, irão se desdobrar outros conflitos, que a Harper Lee nos coloca de frente, em situações que nos causa incomodo, revolta, mas que também nos leva a refletir sobre diversos assuntos e conceitos, e, sem dúvidas o que mais é questionado é: Justiça.
Cabe ressaltar que o livro possui um fundo autobiográfico, onde o pai da Harper Lee, homem branco, fora também um advogado, e, representou a defesa em um caso envolvendo dois homens negros.
Por ser narrado por uma criança de 8 anos, temos a inocência infantil vestindo todo esse contexto que nos é apresentado.
Tenho para mim, que a escolha da Scout ser a narradora, tenha sido a humanização dos personagens, mesmo com todos os conflitos sérios e urgentes, bem como tornar a narrativa acessível para qualquer leitor, pois, apesar de ser um clássico, a escrita é fluida.
Outrossim, a Scout é uma garota que exercita muito o pensamento crítico sobre as situações que ocorrem ao seu redor, é uma garota observadora, questionadora e que entende criticamente a realidade na qual ela está inserida, e isso se deve a educação familiar que o seu pai, Atticus, lhe proporcionou.
Aliás, sobre o personagem Atticus, só tenho elogios a tecer, um homem incrível! Exemplo de paternidade, de cidadão, bem como de advogado... um dos personagens masculinos mais inspiradores que eu já li.
Enfim, um núcleo de personagens (Scout, Jem e Atticus), muito bem escrito e desenvolvido, onde cada um tem suas particularidades, diferenças, mas, ao mesmo tempo são unidade.
Discussões que a obra levanta:
Racismo = Temos um retrato de uma sociedade norte-americana branca totalmente elitista e racista dos anos 30. O discurso discriminatório e violento nessa época, estavam mais que reforçados, era algo intrínseco quase, fazia parte da educação familiar, escolar, dos diálogos etc.
Segregação Socioespacial = Temos uma Maycomb que se estrutura em castas, como bem fala a Scout. As diferenças étnicas são utilizadas como instrumento de segregação, onde existe:
“Comportamento de branco x comportamento de negro”; “Bairro de branco x bairro de negro”; “Atitude de branco x atitude de negro”; “Produto de branco x produto de negro”.
Bullying = Existe um personagem chamado Boo Radley, que se torna motivo de piada, chacota e bullying, por ser recluso, não ser sociável, nem comunicativo, enfim, por ter uma formação subjetiva diferente da maioria das pessoas de Maycomb. A própria Scout e seu irmão Jem várias vezes são hostis com o seu vizinho.
A situação expõe algo que é fato, mas que muitos ignora, que é: crianças podem ser sim cruéis. Afinal, a criança é um ser sociável, que possui valores, preconceitos, e estes, se manifestam principalmente dentro de casa ou da escola.
Justiça e Direitos = Por fim, talvez a discussão e o debate que mais surge ao finalizar a leitura, é sobre a Justiça, o seu conceito e como ela é aplicada na sociedade. É através do Atticus e seus posicionamentos diante o julgamento do caso, que o leitor acessa inúmeros questionamentos, dentre os quais, me foram mais pertinentes:
Justiça feita por quem?
Justiça para quem?
Justiça por cor?
Iguais perante a lei em que sentido?
“Sabemos que nem todos os homens são iguais, não no sentido que querem nos impor; algumas pessoas são mais inteligentes do que outras; algumas têm mais oportunidade do que outras, pois nascem privilegiadas; alguns homens ganham mais dinheiros que outros (...)” (p. 255).
“Nos nossos tribunais, quando se trata da palavra de um branco contra a de um negro, o branco sempre vence. É horrível, mas é a vida” (p. 275).
“Se só existe um tipo de gente, por que as pessoas não se entendem? Se são todos iguais, por que se esforçam para desprezar uns aos outros?” (p. 283).
“O que é um negro a mais ou menos no meio de duzentos? Para eles, aquele não era Tom, era um fugitivo” (p. 293).
E você, caro leitor, (re) conhece seus privilégios?
Independente da sua resposta, leia “O Sol é para todos”.
É mais que um clássico... é vital.