jota 28/08/2020Avaliação da leitura: 4,8/5,0 – ÓTIMO (afinal, Knulp foi escrito por Hesse, não tem como não gostar)Kant, Rousseau, Nietzsche e o poeta Rimbaud apreciavam as caminhadas. Nietzche (1844-1900) especialmente acreditava que caminhar era de grande auxílio na busca e ordenação das idéias, do conhecimento do próprio indivíduo. Ele não é citado por Hermann Hesse (1877-1962) em Knulp (1915), embora se observe certa correlação entre suas ideias sobre caminhar e as do personagem-título, um andarilho. Por outro lado, nesta (cara) edição da Todavia temos o escritor paulista Ferréz dando seu depoimento no Posfácio, onde explica porque Hermann Hesse salvou sua vida. E tudo começou com outro livro dele, mais conhecido, Demian (1919).
A menção àqueles pensadores é oportuna porque Knulp não deixa de ter certo conteúdo filosófico, não apenas sobre caminhar, como quase sempre ocorre com a maioria dos livros de Hesse. Ou com todos mesmo, não sei; li várias obras dele, mas não tudo o que escreveu, claro. Sei que aqui e ali os personagens costumam expor suas ideias a respeito da vida, do mundo: Hesse é conhecido como um escritor de ideias, sua marca registrada. Os três textos de Knulp apresentam muitas conexões nesse sentido, podendo ser enquadrados então como um romance de ideias, episódico. Knulp é um andarilho (mas não um maltrapilho) e temos aqui três momentos de sua vida. Ou, como a Todavia escolheu como subtítulo, três histórias da vida de um andarilho.
Knulp é um vagabundo no bom sentido da palavra: não trabalha, mas não pede esmolas, não perturba as pessoas, é um sujeito de paz. Ser humano delicado e sensível, com idéias próprias a respeito do mundo, passeia entre as belas paisagens do interior da Alemanha do final do século XIX, com suas festivas aldeias, suas igrejas, cemitérios e campos, seus artesãos e camponeses. O motivo de Knulp levar essa vida só ficamos sabendo na parte final do livro, O Fim. Antes, lemos os dois primeiros textos com vontade, buscando encontrar a razão de assim viver o personagem. Que está mais para cigarra do que para formiga, se estivéssemos lendo a conhecida fábula de Esopo.
Para entender um pouco melhor a personalidade de Knulp vale transcrever um pequeno trecho do livro, justamente o começo do primeiro texto, que se intitula Início da Primavera: “No início dos anos 1890, nosso amigo Knulp teve de passar algumas semanas no hospital. Recebeu alta em meados de fevereiro, quando fazia um tempo horrendo, de modo que, passados poucos dias de caminhada, já voltara a ficar febril e logo precisou encontrar abrigo. Como nunca lhe faltaram amigos, ele encontraria sem esforço uma acolhida amistosa em quase todas as cidadezinhas das redondezas. Porém Knulp era curiosamente orgulhoso em relação a esse tipo de coisa, tanto que, quando aceitava algo assim, os amigos consideravam uma grande honra.”
Continuando, hospedado na casa de um amigo artesão, agora casado, Knulp ignorava esse fato, fica constrangido com a atenção exagerada que a esposa dele lhe dá. Na verdade, ela parece querer oferecer-lhe mais do que isso, o que vai profundamente contra os princípios do rapaz. Ela insiste, novamente procura ter mais intimidade com ele, então Knulp toma uma decisão... Mas antes disso ocorrer vamos conhecendo um pouco mais sobre a vida do rapaz: ele gostava de ler, portava cópias de alguns poemas e provérbios, imagens recortadas de revistas, apreciava os povos nórdicos e o mar. Um recorte surrado que portava trazia a imagem da atriz Eleanora Duse e outro, a de um veleiro... De volta ao começo: ele conta ao amigo sobre a esposa assanhada ou fica calado?
No segundo relato, Minhas Memórias de Knulp, é um amigo de caminhadas que discorre sobre os tempos da juventude do andarilho, hoje com cerca de quarenta anos e bastante adoentado, como se lerá no terceiro e último texto. Neste, o narrador fala de Knulp com admiração e mais do que isso, através de alguns fatos passados entre eles, ficamos conhecendo melhor o pensamento de Knulp, suas qualidades e fraquezas. Tudo isso se dá enquanto ambos descansam na paz de um bucólico cemitério, uma oportunidade para falar não apenas sobre a vida, mas sobretudo acerca da morte. Esta é a parte mais filosófica ou espiritual do livro, puro Hermann Hesse.
O Fim, terceiro episódio, é mesmo sobre o fim da vida do andarilho. Passados os anos, aquele jovem que era admirado pelos amigos e que deixava as mulheres fascinadas por sua beleza cede lugar a um homem adoentado, tuberculoso, com pouco tempo de vida. E que teimosamente se recusa a se internar num hospital recomendado por um antigo companheiro de escola, hoje médico. Knulp consegue voltar à cidadezinha onde nasceu e entre muitas lembranças que lhe vêm à mente, também estão os acontecimentos que o levaram à vida de andarilho. E depois, quando ele parte, é como se estivéssemos contemplando a partida de um querido amigo, que jamais tornaremos a ver novamente. E isso é tudo.
Lido entre 24 e 27/08/2020.