Euflauzino 17/04/2015Quando a ignorância é benção
Nem sempre nos deparamos com um clássico e nem sempre este corresponde à nossa expectativa. O que dizer de Um cântico para Leibowitz (Aleph, 400 páginas)? Trabalho primoroso da editora, com capa aveludada, dois glossários, um deles contendo expressões em latim bastante utilizadas no livro e tradução impecável. Fisicamente perfeito. Passemos para o texto, vencedor do Prêmio Hugo de 1961, como melhor romance, comparável a “1984” e “Admirável mundo novo”, está além, muito além de minhas expectativas. Walter M.Miller Jr. é simplesmente soberbo. É o mínimo que posso dizer!
O livro que se inicia no século XXVI, 600 anos após uma hecatombe nuclear, perpassa 1800 anos de história futura. Seria uma parábola, uma crítica social, um aviso, uma visão? Não sei dizer. O choque é grande, preparem-se para o soco no estômago, porque ele virá.
É dividido em três partes com saltos de 600 anos. Em todas elas os monges da Ordem de Leibowitz tentam proteger e reunir fragmentos de conhecimento há muito esquecidos para que os homens possam aprender com seus erros.
Na primeira parte “Fiat Homo” (Faça-se o homem), um jovem noviço se depara acidentalmente(?) com uma relíquia que poderia ter pertencido ao padroeiro de sua ordem, o beato Isaac Edward Leibowitz, em vias de canonização, e tem-se início a saga.
Após o holocausto, novas gerações vão nascendo com mutações devido à exposição à radiação, inflamam ainda mais homens humildes que tomam para si a obrigação de destruir todo conhecimento e cultura existentes através de um movimento chamado Simplificação:
“…identificou-o não apenas como um homem instruído, mas também como especialista em armamentos. Com a cabeça coberta por um capuz de aniagem, ele foi martirizado no mesmo instante, estrangulado com um nó de forca não preparado para quebrar o pescoço e, ao mesmo tempo, assado vivo…”
Todos aqueles que detinham o conhecimento são caçados pelos sobreviventes e martirizados, todos os livros, apontamentos, máquinas são destruídos, porque o homem crê que o saber só poderia trazer o mal. É a volta à Idade Média. Cabe aos monges proteger o que resta copiando tudo o que encontram e neste intento enfrentam inúmeros percalços:
“Por vários segundos, o velho permaneceu pronto como um felino para entrar em combate enquanto estudava a face do adolescente, empolada pelo sol. O erro do peregrino tinha sido inevitável. Criaturas grotescas que perambulam pelas bordas do deserto costumam usar capuzes, máscaras ou mantos volumosos para esconder suas deformidades. Entre essas criaturas havia algumas cuja deformidade não se limitava ao corpo, e essas consideravam os viajantes uma fonte confiável de carne comestível.”
O final desta primeira parte é de cortar o coração, mas a segunda “Fiat Lux” (Faça-se a luz) consegue ser ainda melhor. Dá-se um salto de 600 anos e a ordem continua com seu trabalho de proteção:
“Agora, parecia que a Era das Trevas estava passando. Por doze séculos, uma pequena chama do conhecimento se mantivera viva, bruxuleante mas viva, nos monastérios. Somente agora a mente das pessoas parecia pronta para ser iluminada… alguns pensadores orgulhosos tinham afirmado que o conhecimento válido era indestrutível, que as ideias eram eternas, que a verdade era imortal… mas as culturas humanas não eram imortais e podiam perecer com uma raça ou uma era.”
O mundo está agora dividido em reinos que cultuam a conquista e clãs que defendem a barbárie e suas crenças. A ambição de conquistar o mundo não leva em conta o conhecimento, apenas o conflito de interesses, é o poder pelo poder:
“… ofereço um breve esboço do que o mundo pode esperar, em minha opinião, da revolução intelectual que está apenas começando… A ignorância tem sido o nosso rei. Desde a morte do império, esse rei se senta sem ser questionado no trono do Homem. Sua dinastia é milenar. Seu direito de governar agora é considerado legítimo… Amanhã, um novo príncipe reinará… O nome dele é Verdade. Seu império se estenderá por toda a Terra. E o domínio do Homem sobre a Terra será renovado.”
Todo o conhecimento preservado em papel começa a ser interpretado, mas sofre resistência daqueles que querem se perpetuar no poder e daqueles que preferem continuar na ignorância. É difícil abrir os olhos de quem não quer enxergar:
“Muitos enriquecem utilizando as trevas de sua monarquia. Eles formam sua Corte e, em nome da ignorância, fraudam e governam, enriquecem e perpetuam seu poder. Até mesmo a instrução eles temem, pois a palavra escrita é outro canal de comunicação que pode levar seus inimigos a se unir. Suas armas são afiadas pela cobiça e eles as usam com perícia…”
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