3.0.3 16/04/2024
Estas areias são linguagens que maré e vento inscreveram aqui
“Inelutável modalidade do visível: pelo menos isso, se não mais, pensando através dos meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, marissêmen e maribodelha, a maré montante, estas botinas carcomidas. Verdemuco, azulargênteo, carcoma: signos coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: nos corpos. Então ele se compenetrava deles corpos antes deles coloridos. Como? Batendo com sua cachola contra eles, com os diabos. Devagar. Calvo ele era e milionário, maestro di color che sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se pode pôr os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê.”
O que é o livro? O livro me puxa para um abismo que é um espaço de ausências seguidas, e esse abismo guarda em si o deserto onde nos movemos infinitamente; o livro é o deserto mais árido que há. Encontrar-se e perder-se nele é fantástico. É coisa de outro mundo. Aquele que detém uma parte do livro, qualquer que seja, fragmento, pedaço rasgado, já consegue sonhar outros sonhos, pois um livro pode ecoar o eco do outro que o incorporou numa vibração sutil; assim, alcança-se um diálogo silencioso e penoso, incansável, solidez que pode ser atravessada com a mão para buscar palavras além desse abismo. E sei que também voltaria abismado do abismo, sombrio e diáfano, com a mesma ausência oscilante de um livro.
Ulisses (1920), a obra-prima de James Joyce (1882-1941), é um monumento ao brilho literário e à redefinição dos limites da narrativa. Reconhecido como um dos maiores romances do século XX, Ulisses não apenas reimagina o épico de Homero, a Odisseia, mas o transpõe para o cenário pulsante das ruas e tavernas de Dublin. Em uma proeza de estilo e perspectiva, Joyce retrata as diversas facetas da vida em um único dia, o 16 de junho de 1904, conhecido hoje como Bloomsday. É uma celebração que cresce em popularidade, testemunhando a perene grandiosidade do romance e o desejo humano por alegria e comunhão.
Em vez de elevar a vida cotidiana às alturas da mitologia, Joyce inverte o processo, transformando um dia comum em um épico moderno. Cada personagem e ação são imbuídos de sentido heroico, onde até mesmo a simples tarefa de enfrentar um nacionalista embriagado em um bar se torna uma conquista lendária. Ulisses é mais do que um romance; é um mergulho profundo na alma de Dublin, vista através dos olhos visionários de Joyce.
Neste épico literário, Joyce ergue a fasquia da narrativa para além da estratosfera, levando-nos a uma jornada através da amada Dublin suja, onde cada página é um testemunho do poder transformador da escrita e da imaginação. Navegar no complexo labirinto da literatura requer uma mente afiada e uma dose generosa de paciência, mas os tesouros descobertos ao final da jornada são certamente gratificantes. Não é de surpreender que muitos desistam deste romance pelo caminho ou que simplesmente não o apreciem; afinal, esta obra é genuinamente desafiadora. Joyce, com maestria peculiar, entrelaça alusões enigmáticas e datadas, narrativas que nos envolvem em névoa densa e vocabulário invejável, criando uma odisseia literária destinada a desafiar e a intrigar. Ele mesmo admitiu ter adornado seu texto com tantos enigmas e charadas que garantiria séculos de debate entre os acadêmicos sobre seu verdadeiro significado, assegurando assim sua imortalidade.
Os leitores devem ser advertidos: este não é um romance para os fracos de coração. Há momentos em que a frustração parece prestes a nos consumir, tentando-nos a abandonar o livro. No entanto, é na segunda metade que começamos a desvendar os segredos que ele guarda, e é então que percebemos que o romance conquistou um lugar especial em nós. Ao terminar a jornada, somos surpreendidos ao perceber que estamos diante de uma das mais grandiosas obras já concebidas, e o amor por ela floresce em nossos peitos. Talvez essa sensação seja similar à experiência de quem se aventura em maratonas ou escala montanhas: uma jornada árdua, repleta de desafios, mas cuja conclusão traz consigo um orgulho e uma euforia indescritíveis. Há recompensas inúmeras a serem colhidas ao longo da leitura.
Ulisses não só exibe um talento literário incomparável, mas também oferece uma variedade de estilos que cativam e surpreendem. Muitos se esquecem de mencionar que este romance também é dotado de humor sutil. É um livro que exige que nos ensinemos a nós mesmos, que nos desafia a ir além da simples leitura. Não é à toa que estudiosos dedicam anos de suas vidas a desvendá-lo, mantendo-o ainda hoje como objeto de debate e admiração. Até o grande Ulisses precisou de auxílio em sua jornada épica.
“Arrojo esta sombra términa de mim, hominiforma inelutável, chamo-a de volta. Intérmina, seria ela minha, forma de minha forma? Quem me percebe aqui? Quem em lugar algum jamais lerá estas escritas palavras? Signos em campo branco. Em algum lugar a alguém na tua voz mais maviosa.”
A obra é uma tapeçaria literária, tecida com uma vasta gama de estilos e técnicas narrativas. A habilidade de Joyce em transitar entre diferentes formas de escrita – desde a sátira de publicações populares até a reverência aos mitos ancestrais e a aplicação de conceitos científicos à prosa – cria uma experiência de leitura multifacetada. Cada linha do romance é uma porta para um universo distinto, onde o leitor é convidado a explorar e se aventurar com a riqueza da expressão literária.
O famoso fluxo de consciência, ousadas alucinações disfarçadas de jogos, e a profusão vertiginosa de prosa, que varia de ornada a singela, demonstram o amor de Joyce pela experimentação estilística. A linguagem é frequentemente brincalhona, lírica e repleta de trocadilhos, demonstrando o talento excepcional de Joyce para a manipulação linguística. Ele até usa a estrutura das frases para transmitir movimento. Somente pela sua maestria linguística, Ulisses se destaca como uma das obras mais espetaculares já escritas, desafiando até mesmo os limites do nosso vocabulário.
Uma das características mais debatidas de Ulisses é a técnica inovadora de Joyce de imergir o leitor nos pensamentos das personagens. Não se trata de uma narração em primeira pessoa convencional; em vez disso, os personagens parecem estar inconscientes da presença de um observador em seus pensamentos. As informações emergem em rajadas desconexas e aleatórias, sem que Joyce se preocupe em fornecer clareza ao leitor. Assim como William Faulkner (1897-1962), Joyce deixa o leitor sozinho para montar o complexo quebra-cabeça narrativo.
A técnica narrativa empregada por Joyce permite uma fluidez de consciência entre as personagens, onde o leitor é frequentemente confrontado com transições abruptas de pensamento. O solilóquio de Molly exemplifica essa técnica, com os pensamentos de Boylan e Bloom se sobrepondo de maneira indistinta. A narrativa exige uma leitura atenta e reflexiva, pois a identidade do falante pode não ser imediatamente aparente, requerendo que o leitor dedique tempo para discernir a fonte dos pensamentos apresentados. A estrutura do romance é tal que acompanha os movimentos diários de Stephen e Bloom, mas não de forma linear ou contínua. Em vez disso, Joyce constrói uma narrativa polifônica que entrelaça diferentes perspectivas, permitindo que a história capture a essência de um dia inteiro. Esta abordagem oferece uma visão holística e multifacetada dos eventos, refletindo a complexidade da experiência humana e a interconexão das vidas individuais.
A noção de paralaxe, emprestada da astronomia, é transposta para a narrativa de Ulisses, servindo como metáfora para a multiplicidade de perspectivas que Joyce apresenta. Bloom reflete sobre esse conceito, que se torna um leitmotiv ao longo do romance, sugerindo que a realidade pode variar significativamente dependendo do ponto de vista do observador. Joyce utiliza essa ideia para enfatizar a subjetividade da experiência humana e a complexidade inerente à interpretação dos eventos e das relações interpessoais. Nesse sentido, os leitores são convidados a adotar uma postura ativa na construção do significado do texto, navegando por um oceano de pensamentos e imagens que, muitas vezes, parecem contraditórios ou incompatíveis. Por meio dessa técnica, Joyce desafia os leitores a reconhecer e apreciar a diversidade de interpretações possíveis, incentivando uma leitura mais profunda e engajada que vai além da superfície do texto. Ulisses não apenas conta uma história, mas também convida à reflexão sobre como as histórias são contadas e percebidas, destacando a riqueza que emerge da confluência de diferentes pontos de vista.
“Nutridos e nutrientes cérebros ao meu redor: sob lâmpadas incandescentes, pingentes com filamentos pulsando desmaiados: e na escuridão de minha mente uma preguiça do inframundo, relutando, avessa à claridade, remexendo suas dobras escamosas de dragão. Pensamento é o pensamento de pensamento. Claridade tranquila. A alma é de certo modo tudo que é: a alma é a forma das formas. Tranquilidade súbita, vasta, candescente: forma das formas.”
A diversidade de narradores é um testemunho da habilidade literária de Joyce. Cada personagem é dotado de uma voz distinta, caracterizada por um estilo, vocabulário e estrutura gramatical próprios, sendo Molly Bloom exemplo notável dessa variedade. A complexidade das vozes narrativas pode levar o leitor a questionar as perspectivas de Joyce sobre questões sociais, como sua visão sobre judeus e mulheres. No entanto, Joyce subverte frequentemente as expectativas ao apresentar pontos de vista contrastantes.
A representação das mulheres e da sexualidade é central na narrativa, o que provocou debates sobre a possibilidade de Joyce ser misógino. A descrição de personagens femininas, muitas vezes focada em sua sexualidade, e a presença de figuras como prostitutas podem ser interpretadas como reforço dessa perspectiva. Contudo, é importante considerar que Joyce pode estar explorando a complexidade da condição feminina e as normas sociais da época, em vez de simplesmente perpetuar estereótipos. A ambiguidade e a multiplicidade de interpretações são características essenciais de uma grande obra literária, convidando o leitor a uma análise mais aprofundada das intenções do autor e das dinâmicas sociais retratadas no romance.
Pelos olhos de Bloom, somos confrontados com uma visão objetificada e desprovida de remorso das mulheres como objetos sexuais, bem como uma perspectiva masculina sobre a sexualidade feminina. No entanto, com Molly, Joyce nos apresenta uma visão altamente contrastante das mulheres e de sua própria sexualidade, explorando como elas percebem não apenas sua própria sexualidade, mas também como enxergam a sexualidade masculina e até mesmo como imaginam ser vista pelos homens. Molly vislumbra a possibilidade de ter um pênis e reflete sobre a experiência de manter relações íntimas com outra mulher. Tais pensamentos, embora possam ser considerados polêmicos ou mesmo ofensivos por parte do público, devem ser examinados sob uma perspectiva ampla e enquadrados na narrativa e na construção das personagens. É crucial que a análise literária reconheça e explore a complexidade dos temas abordados, sem preconceitos ou julgamentos precipitados.
É pertinente reconhecer que James Joyce estava ciente da rigorosa censura imposta aos romances na Inglaterra e nos Estados Unidos. Frequentemente, ele incorporava trechos que desafiavam tais restrições. Não é inesperado que Ulisses tenha sido proibido nos Estados Unidos até 1934, ano em que a Suprema Corte Americana anulou a proibição, em um veredito emblemático sobre a legislação de obscenidade. Essas facetas, embora possam ser consideradas polêmicas, enriquecem e intensificam a representação da condição humana delineada por Joyce na obra.
A influência de Hamlet, de Shakespeare (1564-1616), é tão preponderante quanto a da própria Odisseia. Essa intertextualidade ressalta a natureza multifacetada das perspectivas e a intenção de Joyce em ancorar suas personagens à realidade, evitando definições ou alinhamentos claros. A obra shakespeariana é um tópico recorrente entre os intelectuais de Dublin, e um momento decisivo do romance é marcado pela análise de Stephen Dedalus sobre Hamlet, desvendando, assim, camadas dos temas centrais da obra. Desde as ideias do papel de Stephen como Telêmaco em busca de um pai substituto em Bloom, até os pensamentos contínuos sobre o adultério, tudo se desenrola durante a palestra de Stephen sobre Hamlet. No entanto, essa cena também demonstra que Stephen é uma figura de Hamlet, assim como Bloom é uma figura do falecido Rei, e que Molly pode se encaixar no papel da Rainha traidora, assim como Penélope.
“A arte tem de revelar-nos ideias, essências espirituais sem forma. A suprema questão sobre uma obra de arte está em quão profunda é uma vida que ela gera. A pintura de Gustave Moreau é a pintura das ideias. A mais profunda poesia de Shelley, as palavras de Hamlet, põem nosso espírito em contacto com a sabedoria eterna, o mundo das ideias de Platão. Tudo o mais é especulação de estudantezinhos para estudantezinhos.”
É interessante observar que muitos dos personagens, especialmente Mulligan, são baseados em pessoas reais com quem Joyce interagiu. Stephen explora como os personagens de Hamlet correspondem à própria família de Shakespeare, assim como esses personagens se assemelham aos que cercam Bloom e aos que cercavam Joyce. Stephen também é altamente representativo do próprio Joyce. Ele foi o protagonista do romance semi-autobiográfico de Joyce, Um retrato do artista quando Jovem, e neste romance o vemos continuar sua busca pela arte. Em um cenário de discussão, ele se posiciona ao lado de um recém-nascido, debatendo a relevância entre a vida da mãe e a do filho no momento do nascimento. Essa postura revela suas ideias sobre a arte como uma criação de valor inestimável – como se cada pincelada, cada nota musical, fosse um gesto de dar à luz à própria essência da vida. Essa delicada metaficção é apenas uma das inúmeras estratégias pelas quais Ulisses cativa os leitores. Artesão habilidoso, Joyce tece palavras e conceitos, criando um mosaico que transcende o tempo e nos envolve em sua magia.
James Joyce escapa dos clichês com maestria, desenvolvendo uma trama de personagens complexos. Leopold Bloom, por exemplo, é uma contradição ambulante, um verdadeiro enigma: judeu e batizado, oscila entre a figura paterna e os desejos maternos, desafiando as normas de gênero. Seu coração gentil às vezes se contradiz com críticas aos outros por sua própria gentileza. Longe de ser isento de falhas, Leopold Bloom é um sedutor desavergonhado. Pelas ruas de Dublin, suas intenções lascivas em relação às mulheres não passam despercebidas. Ele é um dançarino da vida, sempre em movimento, como se buscasse escapar das sombras do passado. A tristeza o persegue, e os pensamentos sobre as transgressões de sua esposa pesam sobre seus ombros, como se a fuga fosse seu destino inevitável. Assim, Bloom, com sua humanidade multifacetada, é um dos personagens mais encantadores da literatura.
No emaranhado das palavras, a “união” entre Bloom e Stephen é fio invisível, laço sutil a transcender o óbvio. Como pássaros em voo, cruzam-se, divergem e se entrelaçam: casamento de almas, não de convenções. Stephen, o artista atormentado, e Bloom, o observador silencioso, movem-se na penumbra da linguagem. Desencontros e desafios marcam sua jornada, mas cada novo choque reinaugura suas essências. Mapa de encontros e despedidas, Ulisses fia destinos com laços de mistério e significado. Como observou Jung, o encontro de duas personalidades é como o contato entre duas substâncias químicas. Se houver alguma reação, ambos se transformam. Essa toada ressoa na interação entre Bloom, Stephen e outros personagens, destacando a transformação mútua que ocorre quando personalidades tão distintas se encontram e se envolvem em um diálogo interno e externo no romance.
Ulisses não é um romance fácil à primeira vista, mas vale o esforço investido. A sua prosa é intimidadora, mas, com paciência e orientação, o romance se revela uma verdadeira obra-prima, permitindo que o leitor mergulhe na linguagem de Joyce. Há uma riqueza de técnicas e enigmas a serem desvendados, tornando a leitura gratificante. Além disso, Ulisses é hilário em muitos momentos, acrescentando uma camada de humor à complexidade da narrativa. Joyce deixou um legado na literatura com Ulisses, que hoje é merecidamente reconhecido como um dos maiores romances do século XX. Esse livro, portanto, merece ser lido, pois nele cada palavra ganha vida na mente do leitor.
“Stephen fechou os olhos para ouvir as botinas triturar bodelha e conchas tagarelas. Estás andando por sobre isso algoqualcerto. Estou, uma pernada por vez. Um muito curto espaço de tempo através de muito curtos tempos de espaço. Cinco, seis: o nacheinander. Exactamente: e isso é a inelutável modalidade do invisível. Abre os olhos. Não. Jesus! Se eu cair de uma escarpa que se salta das suas bases, caio através do nebeneinander inelutavelmente. Até que estou deslocando-me bem neste escuro. Minha espada de freixo pende a meu lado. Tacteia com ela: é assim que se faz. Meus dois pés nas botinas dele estão no final de suas pernas dele, nebeneinander. Soa maciço: feito pelo malho de Los Demiurgos. Estou eu andando para a eternidade ao longo do areal de Sandymount? Tritura, tagarela, trila, trila. Dinheiro do mar selvagem. Dômine Deasy sabe tudinho.”