GioMAS 30/05/2023
Para aprender a gostar de filosofia - A Sátira do Humanismo
Sabe um livro que dá gosto de ler?
Posso afirmar com convicção que "Elogio da Loucura" reúne todas as características de uma obra cult, com as pompas e circunstâncias da literatura intelectual, filosófica, sem perder o bom humor.
O autor, teólogo e filósofo humanista, por meio da personificação mitológica da loucura, desenvolve um monólogo satírico, abordando, em uma única "pegada", as características mais pungentes do movimento historico-cultural situado na transição da Idade Média para a Idade Moderna - movimento designado, principalmente nas esferas da arte e filosofia, como humanismo renascentista.
Assim, sob a perspectiva da Loucura, representada como divindade mitológica, solidária e, na mesma medida, aversa aos dramas humanos, o autor nos envolve em debates sobre a hegemonia da Igreja Católica, a relação com a espiritualidade, política, arte e filosofia, traçando, de forma descontraída, os contornos do cientificismo e racionalismo.
Como não poderia deixar de ser, há extensa reflexão sobre a sociedade e a condição humana. O homem, como elemento central do discurso, é avaliado por sua conduta, caráter e posicionamento. A Loucura, enquanto testemunha das dinâmicas sociais e oradora, compreende o indivíduo como agente ativo, autônomo, responsável por seus atos, ilustrando, assim, a ruptura com o autoritarismo religioso e a influência da Igreja Católica na construção da identidade.
A Loucura, inclusive, engrandece a liberdade em todas as suas acepções, opondo-se veementemente à utilização dos dogmas religiosos como subterfúgio para dominação e violência. Aos adeptos desta prática, chama de hipócritas, pedantes, cegos pelo véu da falsa sabedoria e soberba.
Nesse ponto, a obra retrata com excelência o resgate da mitologia grega e romana, decorrente da conversão da visão teocentrista para a antropocentrista. A mitologia pagã, mesclada com a arte, permitia a exaltação das emoções humanas, suas imperfeições, vícios, paixões excessos e decadência, contrapondo-se à rigidez das produções artísticas cristãs.
O ensaio aborda a temática de forma extensa, valendo-se de inúmeras referências à literatura greco-romana, ironizando as mazelas dos deuses e dos homens, ambos absortos em vaidades e devaneios dos mais diversos.
Desnecessário frisar a importância da obra para a Reforma Protestante. Irrelevante, também, mencionar as críticas ao Clero, não é mesmo?Tampouco me ocuparei com digressões sobre os monarcas, fidalgos, comerciantes, advogados, mulheres e o tragicômico papel que, aos olhos da Loucura, eles interpretam. Não! Esses são aspectos já muito explorados e evidentes - não que os demais não sejam. A verdade é que qualquer temática se mostra interessante e inovadora para os leigos, assim como eu. Podendo, por outro lado, soar como infindável ladainha - mais do mesmo - aos cultos. De toda forma, prefiro me ocupar de outro debate.
Por mera satisfação pessoal e petulância, adentrarei em uma análise narrativa que certamente não tenho competência ou conteúdo para travar - desculpem-me os filósofos, mas essa é a beleza das redes sociais, falar com muita convicção e nenhuma erudição. Sim, aceito de bom grado críticas e correções (coragem? Talvez. Arrogância, jamais).
Apesar da manifesta oposição à retórica, o autor utiliza-se de técnicas discursivas para formação do convencimento. Pode-se dizer que a capacidade persuasiva da narradora provém de sua credibilidade, diga-se, inquestionável, eis que dotada de autoridade divina e onisciente.
Além disso, há forte apelo às emoções, crenças profundamente arraigadas e motivações subjetivas, estimuladas, em geral, por enunciados abstratos e, simultaneamente, sensíveis ao interlocur, como a infância, velhice, romances, beleza, ódio etc. Basta identificar pontos comuns, apelo ao inconsciente e pronto, está feito, estreitaram-se os vínculos entre leitor e orador.
Em sequência, são apresentados fatos, verdades universais, conceitos racionais capazes de amparar a conclusão que se pretende. O leitor é conduzido para o desfecho - que lhe parece - óbvio.
Tem-se, portanto, os três pilares fundamentais da retórica de Aristóteles, ethos, pathos e logos, em outras palavras, ética (caráter), emoção e lógica. Veja se não é o triângulo retórico?
Erasmo nos presenteia, ainda, com metáforas, analogias, perguntas retóricas, refutação e exagero (ironia carregada). Um mestre da retórica, não se pode negar.
Calma, eu sei. Ao refutar a retórica, o autor se refere à técnica sofista, descompromissada com a verdade, ou seja, a manifestação da "sabedoria (sapientia) aparente mas não real?, utilizada tão somente para favorecer o orador. Não diz respeito, evidentemente, ao discurso filosófico, voltado para a verdade objetiva e absoluta.
Será?
Estaríamos diante do teólogo ou da Deusa Loucura?
A Loucura estaria mais inclinada à retórica oportunista e charlatã ou adotaria postura sóbria e responsável?
Minerva - talvez - seja capaz de nos responder.
"Quanto a mim, deixo que os outros julguem a minha tagarelice; mas, se o meu amor próprio não deixar que eu o perceba, contentar-me-ei de ter elogiado a Loucura sem estar inteiramente louco."
(Erasmo de Roterdã).
Por fim e finalmente, rsrs, fico com a alegria e jovialidade dos loucos. Deixemos para os sábios a hipocrisia e vaidade.