spoiler visualizarpavezijoao 13/07/2021
Uma obra sobre identidade, memória e drama familiar
"Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é [*****]mplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras - Pág. 183 [...]"
A obra trata sobre uma família de imigrantes árabes em Manaus, estendendo-se principalmente da Segunda Guerra Mundial até o Regime Militar. Os dois irmãos gêmeos são Omar e Yaqub, completamente opostos em costumes (Omar bebia, farreava, era temerário e passional, enquanto Yaqub era centrado, quieto, frio e calculista). Essa oposição é acentuada quando Omar, ciumento, abre a cabeça do irmão com uma garrafa e Yaqub é mandado para o Líbano por 5 anos.
O narrador personagem em 1a pessoa é Nael, sendo sua identidade desconhecida nas primeiras páginas e seu nome revelado só no final. Filho de um dos gêmeos com Domingas, a índia órfã adotada pela família e transformada em empregada, Nael conta a história em questão baseado em suas lembranças e testemunhos, juntamente das confissões dos outros protagonistas, principalmente seu avô, Halim (diálogos entre os dois são constantemente resgatados).
Mesmo após uma certa tentativa de organização da cronologia dos fatos, o pai de Nael permanece desconhecido ao final, pois Omar estuprou Domingas em um período em que ela era próxima de Yaqub. Na página 196: "Hoje, penso: sou e não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilhado comigo essa dúvida. O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos permanecem a nós mesmos". É como se ambos sejam seus pais, sendo nenhum deles pai algum no final.
Enfim, a família inteira se centra nos dois irmãos. Zana, mãe, sempre teve preferência por Omar, o Caçula, mimando-o mais que tudo. Já Rânia, irmã mais nova, sempre manteve uma admiração gigantesca por seus irmãos. É uma relação que beira o incesto, pois Rânia permanece solteirona por não haver pretendente que se compare aos seus irmãos; Zana, por outro lado, carrega um ciúme indescritível por seu Omar, frustrando toda e qualquer tentativa dele amar qualquer outra mulher, criar uma vida própria ou se afastar dela. Halim, inclusive, a todo momento reitera seu ciúme de Omar, pois ele roubou as atenções de sua esposa; os filhos que nunca quis no geral roubaram a paixão, o fervor e a liberdade de seu relacionamento.
Seja como for, é uma narrativa cheia de digressões, incertezas, metalinguagem, dramas e traições familiares. Citando meu professor, o crescimento da família acompanha o crescimento de Manaus, pois ao mesmo tempo que esta se urbaniza, aumenta as desigualdades e instabilidade, ainda mais no Regime Militar, responsável até mesmo pelo assassinato do professor de Omar e a prisão desse gêmeo. Ninguém parece se salvar como verdadeiramente bom: Yaqub, que tanto admirei por ter viajado para São Paulo, tornando-se engenheiro e assumindo as rédeas de sua vida, nas últimas páginas recusa qualquer chance de reconciliação, sabotando o cargo profissional do irmão, algo que leva Omar a agredi-lo e depois Yaqub a buscar vingança o perseguindo. Ao fim, tudo desmorona, com a morte de Halim, Domingas e Zana, além da impossibilidade de realização de qualquer reconciliação ou harmonia.