spoiler visualizarLuciane 21/06/2015
O universo conspira!
Realmente, o universo conspira e coloca no caminho de cada um a leitura certa.
Este livro explicou o inexplicável.
"- Mathilde - dissera-lhe - não sei como dizer, mas tenho que dizer: preciso de minha liberdade. Sinto-me aprisionado; não por você, mas pelo destino. Um destino que não escolhi.
Espantada e assustada, Mathilde apenas o fitara. Ele prosseguira:
- Subitamente, fiquei velho. Sito-me um velho sepultado em uma vida: profissão, uma carreira, uma família, uma cultura. Tudo me foi designado. Não escolhi nada. Preciso dar uma chance para mim! Preciso de uma oportunidade para me encontrar!
- Uma chance? - respondeu Mathilde - Encontrar-se? Josef, o que você está dizendo? Não compreendo. Você está pedindo o quê?
- Não peço nada de você! Peço algo de mim mesmo. Tenho que mudar minha vida! Senão, encararei a morte sem jamais sentir que vivi.
- Josef, isso é loucura! - a voz de Mathilde se elevou. Seus olhos se arregalaram de medo. - O que houve com você? Desde quando existe uma vida sua e uma vida minha? Compartilhamos uma vida: fizemos um pacto de combinar nossas vidas.
- Mas como eu poderia dar algo antes que fosse meu?
- Não o entendo mais. "Liberdade", "encontrar a si mesmo", "jamais ter vivido": suas palavras não fazem sentido para mim. O que está acontecendo com você, Josef? Conosco? - Mathilde não pôde mais falar. Forçou ambos os punhos contra a boca, virou para o outro lado e começou a soluçar.
Josef observara o corpo dela arfar. Aproximou-se. Ela respirava com dificuldade, a cabeça inclinada sobre o braço do sofá, as lágrimas escorrendo no colo, os seis ondulando com seus soluços. Querendo consolá-la, pôs a mão no ombro dela - apenas para senti-la se esquivar. Foi então, naquele momento, que percebeu que atingira uma encruzilhada no curso de sua vida. desligara-se, afastara-se da multidão. Consumara o rompimento. O ombro de sua esposa, as costas, os seios já não lhe pertenciam; renunciara ao direito de tocá-la e agora teria que encarar o mundo sem o abrigo daquele corpo.
- É melhor que eu vá imediatamente, Mathilde [...].
Mathilde continuou a chorar. Pareceria incapaz de responder. Teria chegado a ouvir suas palavras?
- Quando souber onde ficarei, contactarei você.
Ainda nenhuma resposta.
- Tenho que ir. Tenho que fazer uma mudança e assumir o controle de minha vida. Acho que quando conseguir escolher meu destino, ambos nos beneficiaremos. Talvez escolha a mesma vida, mas tem que ser uma escolha, minha escolha.
Ainda nenhuma resposta de Mathilde em pratos. Breuer deixara o quarto aturdido.
[...]
Meu Deus, o que ela dirá a todos? Em que situação a deixei? Não, pare! Isso é responsabilidade dela! Não minha. Assumir a responsabilidade dos outros... esse é o caminho para o aprisionamento, meu e deles.
As meditações de Breuer foram interrompidas pelo som de passos subindo as escadas. Mathilde escancarou a porta, batendo-a contra a parede. Seu aspecto era desolador, face pálida, os cabelos pendendo desgrenhados, os olhos inflamados.
- Parei de chorar, Josef. Agora responderei a você. Existe algo de errado, algo de malévolo no que você acabou de me dizer. E algo de imbecil também. Liberdade! Liberdade!. Você fala de liberdade. que sujeira comigo! gostaria que eu tivesse tido sua liberdade [...].
Mathilde parou e afastou uma cadeira da mesa. Recusando ajuda de Breuer, sentou-se em silêncio por um momento para tomar fôlego.
- Você quer ir embora? Quer fazer novas escolhas na vida? Será que esqueceu as escolhas já realizadas? Você escolheu casar-se comigo. Sera que você realmente não entende que escolheu um compromisso comigo, conosco? De que vale a escolha se você se recusa a honrá-la? Não sei o que é... talvez um capricho ou impulso, mas isso não é escolha.
Era assustador ver Mathilde naquele transe. Mas Breuer sabia que tinha que manter o pé firme.
- Deveria ter me tornado um "eu" antes de me tornar um "nós". Escolhi antes de estar suficientemente formado para fazer escolhas.
- Então isso também é uma escolha - revidou Mathilde - Quem é esse "eu" de hoje ainda não formado e que escolha feitas hoje não valeram. Isso é apenas auto-ilusão, uma forma de se esquivar da responsabilidade por suas escolhas. [...]
[...]
- Mathilde, não deprecie minha luta. estou pelejando com o sentido de toda a minha vida. Um homem tem um dever para com os outros, mas tem um dever maior para consigo. Ele...
- E uma mulher? E quanto ao seu significado, à sua liberdade?
- Não quis dizer os homens, e sim as pessoas: homens e mulheres; cada um de nós tem que escolher.
- Não sou como você. Não consigo escolher a liberdade quando minha escolha escraviza os outros. Já pensou no que sua liberdade significa para mim? Quais as escolhas para uma viúva ou para uma esposa abandonada?
- Você é tão livre quanto eu. É jovem, rica, atraente, tem saúde.
[...]
- Lembre-se Mathilde, foi você quem quis ter filhos tão logo nos casamos. Filhos e mais filhos. Eu lhe pedi para esperar - Mathilde refreou suas palavras iradas e virou a cabeça para não olhá-lo. - Não posso lhe ensinar a ser livre, Mathilde. Não posso determinar o seu rumo, pois assim deixarei de ser seu rumo, Mas se tiver coragem, sei que encontrará o caminho.
Ela se levantou e andou até a porta. Virando-se para encará-lo, falou em termos comedidos:
- Ouça, Josef! Quer encontrar a liberdade e fazer escolhas? Então saiba que este exato momento é uma escolha. Você diz que precisa escolher sua vida... e que, como o tempo, poderá optar retomar sua vida aqui. Mas Josef, eu também escolho minha vida. E minha opção é dizer para você que não existe retorno. Você jamais poderá retomar sua vida comigo como sua esposa, porque quando você abandonar esta casa hoje, deixarei de ser sua esposa. Você não poderá optar por retornar a esta casa porque ela deixará de ser sua casa!
Josef fechou os olhos e deixou pender a cabeça. Os próximos sons que ouviu foram a porta batendo e os passos de Mathilde descendo as escadas. Sentiu-se abalado com os golpes que absorvera, mas também estranhamente eufórico. As palavras de Mathilde foram terríveis. Mas ela tinha razão! Essa decisão tinha que ser irreversível.
A sorte está lançada - pensou. Finalmente, algo aconteceu comigo, algo real. Não apenas pensamentos, mas algo no mundo real. Tantas vezes, imaginou esta cena. Mas agora eu a sinto! Agora sei o que é assumir o controle de meu destino. É terrível e maravilhoso.
[...]
Animou-se com o pensamento de que, se o homem está só e a necessidade é uma ilusão, ele estava livre! Contudo, ao subir no fiacre, sua animação deu lugar a um sentimento de opressão.
[...]
Tentou adormecer, mas cada vez que cochilava visões de seus filhos lhe invadiam a mente. Doeu imaginá-los sem um pai. Friedrich tinha razão - lembrou a si próprio - ao dizer: "Você não deve criar filhos enquanto não estiver preparado para ser um criador e para gerar criadores." É errado ter filhos por necessidade, usar um filho para aliviar a solidão, dar sentido à vida reproduzindo a sim mesmo em uma cópia. Também é errado procurar a imortalidade lançando um germe seu no futuro - como se o esperma contivesse sua consciência!
Entretanto, e quanto aos filhos? Eles foram um erro, fui forçado a tê-los, eles foram gerados antes que eu tivesse consciência de minhas escolhas.
[...]
Tenho apenas uma vida, uma vida que poderá retornar para sempre. Não quero me lamentar por toda a eternidade de que me perdi ao tentar cumprir meu dever para com meus filhos.
[...]
E Mathilde? Friedrich diz que a única forma de salvar esse casamento é desistir dele! E "é melhor acabar com o matrimônio do que deixá-lo acabar com você". Talvez o casamento tenha acabado também com Mathilde. Talvez ela se sinta melhor sem mim. Talvez ela fosse tão prisioneira como eu. [...]
[...]
- E agora, Eva, estou livre. Pela primeira vez em minha vida, posso fazer o que vier à veneta, ir aonde bem entender. Em breve, provavelmente logo depois de conversarmos, irei à estação de trem e escolherei um destino. Mesmo agora, ainda não sei para onde irei: talvez para o sul ,em direção ao Sol... quem sabe a Itália?
Eva, de ordinário uma mulher efusiva que costumava a responder a cada frase de Breueer com parágrafos inteiros, quedava-se agora estranhamente emudecida.
- É claro - continuou Breuer - que estarei sozinho. A senhora me conhece. Mas estarei livre para me encontrar com qualquer pessoa que eu escolher... - ainda nenhuma resposta de Eva - ou para convidar uma velha amiga para viajar comigo à Itália.
Para seu desânimo, mas também alívio, Eva não respondeu às indiretas. Em vez disso, começou a questioná-lo.
- A que tipo de liberdade o senhor se refere? O que quer dizer com "vida não vivida"? - Fez um aceno incrédulo com a cabeça - Josef, nada disso faz sentido para mim. Sempre desejei a sua liberdade. Que tipo de liberdade eu tive? Quando você se preocupa com o aluguel e a conta do açougue, não tem tempo de se preocupar com a liberdade. [...]
[...]
Duas horas depois, Breuer se viu acomodado em um assento de segunda classe de um trem para a Itália.
Percebeu como fora importante para ele, naquele último ano, dispor de Eva como uma espécie de seguro. Ele contara com ela. Sempre tivera certeza de que ela estaria ao alcance no momento de sua necessidade. Como ela poderia ter esquecido? "Mas Josef, o que você esperava?", perguntou-se a si mesmo. "Que ela estivesse congelada num armário, esperando que você abrisse a porta e reanimasse? Você já tem 40 anos, idade de entender que as mulheres existem independentemente de você: elas têm uma vida própria, elas crescem, elas prosseguem suas vidas, ficam mais velhas, travam novos relacionamentos. Somente os mortos não mudam. [...]
Inopinadamente, foi invadido pelo terrível pensamento de que não eram apenas as vidas de Bertha e de Eva que prosseguiriam, mas também a de Mathilde... de que ela existiria sem ele, de que chegaria o dia em que cuidaria de outro. Mathilde, sua Mathilde, com outro homem: osso duro e roer. Agora as lágrimas fluíam. Ergueu o olhar para a valise no porta-bagagem. Ali estava ela, facilmente acessível, a alça metálica projetando-se oferecidamente em sua direção. Sim, sabia precisamente o que deveria fazer: agarrar a alça, levantar a valise sobre a grade de metal do porta-bagagem, descer a valise, saltar na próxima estação, onde quer que fosse, tomar o próximo trem de volta a Viena e se atirar à misericórdia de Mathilde. Não era tarde demais... certamente, ela o acolheria.
[...]
- Minha esposa, minha família! Eu os amos. Como pude deixá-los? Descerei na próxima estação.
[...]
A caminho de uma loja de roupas, Breuer observou os trajes dos transeuntes e decidiu comprar um paletó azul-marinho curto e quente, botas resistentes e um grosso suéter listrado. Mas todos que passavam por ele eram mais jovens. O que trajariam pessoas mais velhas? Onde estavam afinal? Todos pareciam tão jovens. Como faria amigos? Como conheceria mulheres? Talvez uma garçonete do restaurante ou uma professora de italiano. Mas - pensou - não quero outra mulher! Eu a ama. Isso é doideira. Por que a deixei? Sou velho demais para começar tudo de novo.... [...]
[...]
[Acordou da hipnose]
[...]
- Por que não pára de me olhar? murmurou Mathilde para Breuer [...]
Mas Josef não parou. Como que pela primeira vez, esquadrinhou o rosto da esposa. Doeu perceber que ela também era uma combatente na guerra contra o tempo. [...] Quando isso se dera? Seria ele em parte culpado? Unidos, ele e ela talvez tivessem sofrido menos estragos.
[...]
- Sim - Max sorriu - vi-o olhando para ela. Foi engraçado ver Mathilde embaraçada. Foi como ver aquelas brincadeiras entre vocês nos velhos tempos. Talvez seja bem simples: você a aprecia agora porque chegou bem perto de perdê-la.
- Sim, isso é parte da história, mas não é tudo. Saiba que, durante antos, senti-me refreado por Mathilde. Senti-me aprisionado e sonhei com minha liberdade... experimentar outras mulheres, viver outra vida totalmente diferente. Só que, quando segui o conselho de Muller, quando agarrei a minha liberdade, entrei em pânico e tentei me desfazer dela. Entreguei minha rédea primeira para Bertha e depois a Eva. Abri a boca e disse: "Por favor, me refreie. enfie a rédia na minha boca. Não quero ser livre". A verdade é que fiquei aterrorizado com a liberdade. - Max assentiu gravemente com a cabeça. - Lembra-se do que lhe contei sobre minha visita a Veneza no transe... a barbearia onde descobri meu rosto envelhecido? A rua de loja de roupas onde constatei que era a pessoa mais velha? Algo dito por Muller me ocorreu neste momento: "Escolha o inimigo certo". Acho que esta é a chave! Todos esses anos, venho combatendo o inimigo errado. O tempo todo, o inimigo certo não foi Mathilde, mas o destino. O inimigo real foi o envelhecimento, a morte e meu próprio terror da liberdade. Culpei Mathilde por não me deixar encarar o que na verdade não queria encarar! Pergunto-me quantos outros maridos fazem isso com suas esposas?"
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