Alberto 26/12/2021Único do seu gênero, um Everest literário que recompensa os que o vencem.Difícil de resenhar, de classificar e de explicar. Mais que um livro, é uma experiência. Euclides não tinha medo de ser ambicioso, e tentou abraçar o mundo, por assim dizer. Quis escrever uma rapsódia que enfocasse o fenômeno de Canudos sob a ótica de todas as áreas do saber. Como ninguém pode ser ao mesmo tempo bom em botânica, geologia, meteorologia, história, antropologia, psicologia, filosofia e literatura, é claro que a obra tem falhas, muitas e bem evidentes. E é óbvio, também, que o autor estava preso às ideias e preconceitos da sua época, e não tem como escondê-las. Creio que pretender tirar do livro alguma lição de psicologia, antropologia, etnologia, filosofia seria frustrante, toda essa parte está obviamente datada e superada (abstenho-me de palpitar sobre a parte geológica e botânica, por desconhecer).
À parte esses defeitos, previsíveis num livro que queria esgotar um assunto inesgotável, o que resplandece, para quem lê até o fim e de mente aberta, é a descrição de um drama humano pungente e grandioso, narrado com paixão e destreza. Euclides nunca pretendeu ou fingiu ser imparcial mas seu texto consegue mostrar as grandezas e misérias dos dois lados do conflito. A incapacidade dos que comandam, a estupidez da guerra, as múltiplas utilidades da fé para o bem e para o mal, a capacidade incalculável do homem para se superar na grandeza e no horror, tudo isso é documentado ali, com fartura de imagens dolorosas e memoráveis. Merece o nome de clássico, nem que seja porque é o único do seu gênero.
A prosa de Euclides é, sim, barroca, rebuscada, e acho que pretendeu se elevar para ficar à altura épica do drama que relata, que pareceria só uma matança grotesca e sem sentido se descrita num linguajar coloquial. Um dicionário é indispensável, e ler em ebook com acesso a um dicionário eletrônico é ótima ideia. Mas as imagens poéticas do ambiente e das pessoas, a descrição pintoresca das cenas recompensam o leitor esforçado.
Indicado para estudiosos do Brasil e sua história, para quem gosta do Nordeste, para quem se interessa pela religião como manifestação do espírito humano, para quem ama de verdade os livros.
Não indicado para leitores iniciantes, nem para pessoas muito frágeis que têm problemas com "gatilhos" ou não conseguem separar as partes boas das ruins de um texto. Nem para pessoas que procuram um autor que concorde com elas em tudo.
Dica muito útil: comece a ler pela parte 3 (a luta). A parte 1 é uma descrição pesadíssima de clima, geologia, etnologia, dificílima de ler e provavelmente supérflua. A parte 2 começa também muito descritiva, está cheia de ideias superadas e pseudocientíficas (e preconceitos, claro); mas da metade para a frente narra a saga da família do conselheiro, que é um verdadeiro faroeste caboclo que jorra sangue e fúria, vale a pena. A parte 3 é a reportagem propriamente dita, é movimentada e mais fácil de ler.
A edição que li, da Ubu/SESC, é muito bela, bem acabada, e fartamente documentada com fotos, mapas e posfácios muito instrutivos.