Luciano Luíz 15/03/2020
Um dos eventos históricos mais importantes (senão o mais importante em questão militar) do século 19 no Brasil foi a Guerra de Canudos. EUCLIDES DA CUNHA foi um jornalista que cobriu a maior parte do conflito. E sendo assim, enviava as informações (quase) diariamente pro jornal e desta maneira quem tinha interesse acompanhava. E quem não tinha, mas lia jornal, sempre ia encontrar algo relacionado a este marco.
OS SERTÕES é um daqueles livros que desde seu lançamento rende uma quantidade sem fim de críticas construtivas e destrutivas. E ambas são bem-vindas. Mas o que diabos foi a Guerra de Canudos?!
Naqueles dias a monarquia tinha ido embora e a república ganhava força em apoio político e militar além de outras fontes. No sertão da Bahia, um sujeito que ficou conhecido como Antônio Conselheiro (ou Bom Jesus Conselheiro) vinha fazendo papel de profeta, falando da palavra de Deus, mais especificamente de maneira católica, só que ele não era bem visto por padres e parte da população. Além de pregar, também fazia esforço para reformar igrejas, cemitérios e se possível erguer novos templos. O tempo foi passando e o número de seguidores aumentou explosivamente e resolveram fixar moradia no arraial de Canudos.
Conselheiro não curtia a república e via sentido na monarquia, mas sua missão real era outra: criar uma comunidade independente do mundo exterior (Brasil) e assim esperar que o Messias, Filho do Homem, um dia aterrissasse na localidade aparentemente santa...
Então o governo considerou a turma de Canudos perigosa, já que muita gente vinha se desfazendo de seus bens para ampliar fisicamente a comunidade de Conselheiro. Então lá foi o exército com pouco mais de 100 homens dispostos a botar abaixo essa nova realidade centrada na tal da fé.
Porém, devido a falta de conhecimento do sertão, mais especificamente, na questão geológica e outros detalhes mais, os sertanejos, jagunços, homens de Conselheiro derrotaram com facilidade os soldados treinados. E assim foram feitas outras campanhas com um número cada vez maior de soldados que chegavam em batalhões de milhares. Impressiona o quanto o exército teve de baixas. Até que um dia finalmente conseguiram adentrar Canudos, que mais se assemelhava a uma favela com mais de 5 mil residências. Obviamente devido ao cerco militar, ficava impossível manter provisões. Muita gente passando fome, crianças, adultos, velhos, adolescentes. A coisa não era fácil pra nenhum lado, pois até o exército não tinha condições de se manter de forma decente sob o forte sol que judiava com facilidade.
No fim, quase um ano de guerra, com tiros de canhões como trovões, depois de 100 mil mortes, sim, cem mil. Só em canudos estima-se que houvesse uma população entre 10 e 25 mil. Portanto, quem mais se lascou em números foram os militares.
Os soldados quando pegavam os inimigos, não perdoavam, cortavam-lhes a garganta, atiravam na barriga, passavam a faca sem dó. Os jagunços quando pegavam soldados, eram igualmente impiedosos. Afinal, é uma coisa chamada guerra. E pra piorar todos ali são vulneráveis.
Muitas crianças ficaram deformadas, mutiladas, como um menino que teve os dois lados da boca rasgados com um tiro e os soldados riam dele. Uma menina sem o lado esquerdo do rosto com o maxilar à mostra devido aos estilhaços de uma granada. Coisa triste. Mulheres, homens, velhos. Eram inimigos e deviam ser detidos. As crianças em Canudos (em parte) sabiam manejar armas e diziam que lutariam sem exitar.
Mas, tem uma coisa curiosa. Por que Canudos era considerada uma terra perigosa?! Eles não saíam matando. Apenas fizeram sua comunidade. Queriam viver ali longe dos demais. Provavelmente o estopim, Conselheiro, era o que assustava o governo. Líder que era mencionado em diversos lugares, o homem que sabia das coisas, temido por dizer palavras que atacavam a república e glorificava Jesus Cristo. Em resumo, era considerado o líder de um grupo religioso fanático que crescia velozmente.
Isso chega a ser engraçado em alguns aspectos quando mencionado em pleno século 21. Hoje em dia há pessoas que fazem o mesmo que Conselheiro com igrejas em diversas cidades. São charlatões, criam comunidades com legiões que exaltam o fanatismo e dizem ser os escolhidos de Deus e que o restante da humanidade está condenada. Tá cheio disso por aí. Alguns inclusive são conhecidos como terroristas. Outros são silenciosos e causam estragos financeiros e morais... mas, enfim...
Canudos foi destruída. Mesmo hoje boa parte das ruínas são visíveis. Virou ponto turístico onde dezenas de milhares morreram em troca de pouco ou nada...
O que teria acontecido se a Guerra de Canudos não tivesse ocorrido?! Ninguém sabe e nunca saberemos. No máximo hipóteses de que a região seria uma coisa alicerçada por uma crença e nada mais ou então que teria ruído por dentro...
Mas deixando de lado parte do enredo, o livro de Euclides é considerado como um romance histórico. Há quem diga que na verdade ele é um amontoado de crônica jornalística. Tem quem até o momento não sabe como classificar.
Comprei em 2010 e quando comecei a leitura, mais parecia que era apenas um livro sobre geologia, pois a narrativa extremamente detalhada praticamente mostra tudo sobre pedras, rochas, minerais, a terra, etc. Depois sobre a flora e a fauna. É uma riqueza impressionante. Não sei se existe outro livro em qualquer idioma que seja tão volumoso, pois é preciso persistir na leitura que consome muitas páginas sobre a região onde se dá o conflito. O autor percorre o solo com obsessão para que nada fique de lado. Cada pedra e folha se torna uma história que vai enriquecendo de maneira assustadora a narrativa que mescla ciência e poesia de um jeito que se torna única.
O livro é dividido em três partes: a terra, o homem e a luta. A segunda parte é também ricamente detalhada quanto as etnias que dominam o sertão. Para efetivo de comparação, o autor busca mostrar como são os gaúchos em relação aos sertanejos. Aliás, aqui tem aquela frase clássica que muito se é utilizada em programas de televisão:
O sertanejo antes de tudo é um forte.
Vale lembrar que em vários momentos Euclides afirma que há diferenças entre raças. Que ali não se vê brancos e negros puros. E que o sertanejo é inferior se comparado com outros de localidades distantes. Tanto na questão física quanto intelectual. É uma forma de preconceito e racismo, mas que naqueles dias ninguém parecia se importar. O autor aqui mais uma vez coloca todo tipo de informação, desde alimentação, vestuário, etc.
Apesar de ser um relato grande desse momento da História, há uma quantidade chata de repetições. Principalmente das expedições, pois não muda em praticamente nada. Ou se preferir, todas as cenas de batalha são cópias umas das outras. E convenhamos, isso realmente cansa...
Ao final do livro há algumas notas do autor, mais precisamente relacionadas à críticas ou erros sobre informações técnicas e ele em alguns pontos arruma e em outros deixa do jeito que está. Também fala sobre o uso de certas palavras, até então desconhecidas do público.
Há afirmações de que Os Sertões é o maior livro da literatura brasileira. Sem dúvida é um documento histórico único. Mas não é uma leitura de massa. Ou que venha a ser importante que todos os leitores e leitoras o tenham na estante. A começar que é preciso insistir em suas páginas para ir além da geografia inicial.
O que me deixou decepcionado é que há poucas informações de Antônio Conselheiro. Outra coisa que seria interessante é se existisse relato de alguém do lado de Canudos. Mas como sabemos desde o princípio dos tempos, a história é registrada pelos vencedores. Os perdedores são só uma sombra pouco pesquisada. O próprio Euclides comenta que seu livro é sobre ataque e não defesa.
É bem comum as pessoas comentarem que O Senhor dos Anéis é rico em detalhes de sua geografia, uma ficção de fantasia maravilhosa, mas se comparado a Os Sertões, se percebe que J. R. R. Tolkien fica muito distante em se tratando de observar detalhes de cenários. Esta é a única forma de comparar dois livros tão diferentes. Com seus cenários ricamente ilustrados em palavras que fazem a imaginação dos leitores se esbaldar.
Essa é aquela leitura recomendada para quem curte História. Pois se quiser buscar menos que isso, então vai ter de procurar outra leitura.
Lembro que em 1997, na Globo passou uma microssérie de 4 capítulos sobre Canudos. Desde que assisti tinha vontade de ler. A série apesar de pequena, é muito boa. Valeu ter esperado tanto tempo.
L. L. Santos
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