caio.lobo. 15/01/2022
Quem é herói? Quem é vilão?
É certo, esta é uma das melhores obras de minha vida. A Guerra de Canudos é um episódio muito triste na história sertaneja e vergonhosa para o exército e a República. Um ambiente inóspito, povo miserável, muito sangue, gente estropiada e mutilada, atitudes vergonhosas da recém-inaugurada República e o seu exército ineficiente; como poderia surgir algo belo de coisa tão feia? Euclides da Cunha consegue extrair uma bela flor do meio de uma tragédia com suas obras “Os Sertões”.
A primeira parte, “A Terra”, é uma verdadeira aula de geologia/geografia. É a parte que as pessoas menos gostam, mas uma das que mais gostei. Euclides começa dando o panorama geográfico do sertão onde se situa o vilarejo de Canudos. É um prelúdio. Se explica os relevos, nomes de rios e características, mostra a escassa vegetação sertaneja do semi-árido, também o clima que castiga, e o solo, “um sonho de geólogo”, com seus quartzitos, calcários, gnaisses... Logo se percebe a beleza desta terra seca, uma escultura natural. Até aqui tudo é silêncio, serenidade, imobilidade, admiração pelo natural. Assim como a Criação estava em calmaria e deslumbre no livro de Gênesis, assim também é o sertão no seu vazio, até que esse paraíso acaba, tanto o do Gênesis como do sertão, quando surge aquele que tira a paz: o homem.
“O Homem”, segunda parte da obra, mostra aqueles que moram no sertão, o sertanejo, mostrando suas características, físicas e psíquicas. É uma mistura de raças, três raças: preto, branco e índio. Pela ótica do tempo de Euclides da Cunha essa é uma mistura que não pode dar certo. A mistura faz com que as características boas de cada raça desapareçam, sobrando no indivíduo apenas o pior de cada tipo (interessante notar que este é exato oposto ao Integralismo que surge anos depois, sendo para estes a miscigenação o que gera as características nobres de cada raça num indivíduo). O ambiente de miséria, escassez, extremo calor, seca, solo arredio e sendo o sertanejo um joguete desse meio também influencia no estado psicológico de seus habitantes, mas pode gerar, antes de tudo, um forte. A aula de geografia que o autor dá fica por conta da descrição de costumes, trajes e aspecto físico do sertanejo. O ambiente hostil gera um sujeito maltrapilho, todo torto, mas esse aspecto ruim é recompensado com uma destreza física e força que só um ambiente pedregoso, acidentado e grosseiro pode gerar. Digno de nota é a comparação com o gaúcho, um cavaleiro das estepes do pampa sulino, um ambiente agradável e fácil de se cavalgar. O gaúcho vai para a luta como que para uma festa, com bombacha, chapéu e lenço no pescoço, mas é desajeitado em batalha; o sertanejo com vestes remendadas, em trapos e sem pose é um ótimo guerreiro. Na mente desajustada dos cientistas deterministas e materialistas e de escritores naturalistas, a “mente desajustada” de Antônio Conselheiro é fruto dessa mistura de raças e a vida no ambiente hostil do sertão.
Uma nota aqui, Euclides da Cunha é genial, sua escrita insuperável, certamente um dos melhores escritores do Brasil. Sua escrita tem um nível de detalhe que impressiona. Ele parte do silêncio do ambiente geológico deslumbrante, passando pela efervescência do homem rústico preenchendo o “vazio geográfico”, até que a luta frenética toma conta do cenário; a monodia geológica se transforma em polifonia da multidão de sertanejos, e enfim, na cacofonia da guerra. Euclides da Cunha é tão importante que influenciou escritores internacionais de primeiro quilate, como Jorge Luis Borges e Mario Vargas Llosa. Porém da Cunha tem dois únicos defeitos. O primeiro é acreditar na ciência determinista evolutiva da época, que via o homem apenas como reflexo de seu ambiente, mas até aí não tinha muito o que fazer, este era o Zeitgeist de seu século. O outro defeito é ele ser defensor da República, mesmo depois da chacina que permitiu ocorrer contra os sertanejos, como veremos. A República, que já nasceu num golpe traiçoeiro, nunca deu certo, não dá certo desde que nasci e nem dará certo no futuro. Pena que Euclides da Cunha não pode ver toda a história de nossa República para ver que nenhum de seus representantes era digno, pois só assim para acabar com sua cegueira. O autor acaba, em poucos momentos, ser um tanto ideólogo a favor da República, mas diferente de autores de nossos tempos, que só sabem fazer literatura como ato político, sem se abrir para outras visões de mundo além da porca visão política, Euclides da Cunha vê o valor do inimigo, sua valentia, seu poder e se valor nesta luta.
“A Luta” enfim, esta é a última e mais longa e densa parte do livro. É a descrição literária da Guerra de Canudos. O vilarejo se torna numa cidade com a chegada dos seguidores de Antônio Conselheiro, um gnóstico moderno e sertanejo, como o autor o chama. Conselheiro era místico que pregava o ascetismo, a renúncia aos prazeres, prática devocional, vida profana e religiosa em comunidade e ensinava que a República era o anticristo na terra, pois a República era demasiada materialista, secular e anti-tradicional. Antônio Conselheiro não tinha pretensões de poder temporal, suas pretensões eram místicas, da mesma forma que seus seguidores que queriam viver em oração, mesmo assim a República os via como ameaça, agentes dos monarquistas, e até mesmo financiados por agentes internacionais em um complô contra a recém República. Podemos ver que já havia teoria da conspiração há mais de cem anos atrás, e muitos caíram nestas notícias falsas, incluindo jornais, cientistas e até escritores como Olavo Bilac e o nosso Euclides da Cunha. Então o exército brasileiro é enviado para interromper o crescimento de Canudos. A primeira expedição crê que será extremamente fácil a destruição dos jagunços, porém sofrem uma derrota humilhante e são enxotados do sertão. Fora os mortos e feridos, o resto do contingente teve de voltar com o rabo entre as pernas para sua terra. Vem a segunda expedição, maior, mas os combatentes de Canudos os enfrentam com bravura e violência. As armas de última geração do exército não foram capazes contra as armas rústicas dos jagunços, pois estes conheciam a terra e essa mesma terra que trouxe tanto sofrimento em suas vidas agora os defendia. Os sertanejos atacavam de surpresa, e não só os homens lutavam contra a República, mas também mulheres, velhos e crianças. A hecatombe era brutal, o exército perdia soldados e sargentos; a seca e más condições do ambiente minavam suas forças e os sertanejos aniquilavam as tropas. Nesse interim, durante o pôr-do-sol, acontecia o fato mais humilhante para o exército brasileiro, os moradores de Canudos iam para a igreja, esta construída pelos próprio sertanejos e Antônio Conselheiro, e lá rezavam a missa com todo o vigor e se ouvia seu louvor até fora da cidade. Os sertanejos pareciam nem ter lutado pelo ânimo que demonstravam, enquanto os soldados lá fora estavam no limite das forças. Isso era ao mesmo tempo impressionante e humilhante. Os guerreiros de Antônio Conselheiro vencem mais uma vez.
A terceira Expedição do exército contra Canudos foi mais preparada, levando até enormes canhões apelidados de “matadeira”. Detalhe: estes canhões não foram feitos para solo acidentado como do sertão, além disso, necessitavam de dois engenheiros para operá-los, então, na maior parte do tempo, eram enormes trambolhos que mais atrapalhavam. Aqui Euclides chega no ápice de seu talento, onde a guerra fica mais intensa. O sertanejo é realmente um forte, quanto maior o combate, mais se destaca em sua destreza. A descrição de armas, movimentos do exército, artimanhas dos jagunços, nomes dos “altas patentes” e suas características, defeitos e até mesmo seus podres. Aqui vemos carnificina, muito sangue, amputações, sujeitos alvejados, fogo consumindo parte da cidade, doenças causadas pelo meio, morte por inanição e a crueldade dos soldados, deixando companheiros ao relento e sem auxílio algum morrerem no sertão. A guerra é cruel, mas a escrita é linda. A guerra se prolonga demais, e mesmo com a quantidade grade de soldados vindos de toda a região, o exército enfraquece por conta do cansaço. Mais uma vez Canudos vence, é um milagre.
Muito se fala que a Guerra de Canudos ocorreu por conta das desigualdades, pela pouca assistência do governo, pela vida sofrida daqueles sertanejos. Isso tudo pode ter tido influência em alguns indivíduos, mas foi a fé e crença nas palavras arrebatadoras de Antônio Conselheiro que trouxeram uma nova visão a estas almas. Se fosse só por conta de uma melhoria das condições materiais não haveria sentido, pois os seguidores de Conselheiro abandonavam a vida mundana e prazeres materiais, trabalhando em prol de sua fé apenas. Eles buscavam acima de tudo melhores condições espirituais. Antônio Conselheiro continua aquela tradição da fé poderosa dos povos do deserto, seguindo os passos de Abraão, Moisés, Jesus Cristo, os padres do deserto e de Maomé. A religiosidade do deserto é sempre mais poderosa.
Mas como todos sabem, Canudos caiu. A quarta expedição militar foi fulminante, pois se descobriu o erro que os prejudicava em batalha, que era a falta de uma logística adequada. Então foram implantados hospitais de campanha e levados mantimentos de reserva. Os soldados revigorados começam a vencer, mas os jagunços não se entregam, lutam bravamente sem balbuciar. Isso causa a mais terrível das carnificinas, com muitos inocentes destroçados, como crianças compartes do rosto destruído e mães e avós correndo com crianças ensanguentadas no colo. Há prisioneiros, mas estes não traem a sua fé. Com o aumento dos prisioneiros ocorre uma das cenas mais tristes da história brasileira: o verdadeiro genocídio da nossa história. Não havia lugar para tantos prisioneiros, pois eram dezenas de milhares, então se toma a atitude mais prática e covarde da guerra, que é matar a sangue frio. Aqui as cenas são fortes, pois se degolava aos montes, morte apelida de “gravata vermelha”. E não era só homens que morriam de forma tão cruel, mulheres, idosos, doentes e até crianças morreram assim. Além dos estupros. Aqui o coração de Euclides da Cunha balança e sente vergonha do seu país, pois esta era uma atitude bárbara. Alvim Martins Horcades, médico e testemunha ocular diz o seguinte: “em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros. (…) Assassinar-se uma mulher (…) é o auge da miséria! Arrancar-se a vida a criancinhas (…) é o maior dos barbarismos e dos crimes monstruosos que o homem pode praticar!". Os estudantes da faculdade de direito da Bahia fizeram o seguinte manifesto: “cruel massacre que, como toda a população desta capital já sabe, foi exercido sobre prisioneiros indefesos manietados em Canudos e até na cidade de Queimadas; e (…) vêm declarar perante os seus compatriotas - que consideram um crime a jugulação dos míseros "conselheiristas" aprisionados, e francamente a reprovam e condenam como uma aberração monstruosa. (…) Urge que estigmatizemos as iníquas degolações de Canudos." Até Rui Barbosa foi em defesa de Canudos por conta desse crime hediondo. E claro, Euclides também se escandaliza com essa chacina descrevendo no livro: “A campanha de Canudos lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo."
Enfim Canudos é derrotado logo após a morte de Antônio Conselheiro, que parecia ser a verdadeira força espiritual desse povo. Derrotados, mas não rendidos, não se entregaram, preferindo morrer. O final é triste e desanimador, me dando a impressão que o mal vence. Mas a culpa não é de Euclides da Cunha, que é fenomenal e mostra a beleza do terrível, mas é culpa da nossa história.
Os Sertões é obra tão poderosa e influente que sua visão de sertão é a que seguimos até hoje. Antigamente sertão era todo lugar pouco habitado no interior do país, seja na floresta, na zona seca, no norte, sul, sudeste; com Euclides da Cunha ficou caracterizado o sertão apenas como a área semi-árida do nordeste brasileiro, e isso está profundamente enraizado em nossa cultura. Curiosidades: o termo “favela” surgiu em Canudos, sendo um dos locais de batalha chamado de Morro da Favela, pois neste lugar havia muitas árvores chamadas de favelas por conta de seus favos. Como no Morro da Favela foram construídas muitas casas desordenadamente e amontoadas, os soldados que viram e voltaram para o Rio de Janeiro, com a promessa não cumprida de ganharem casas do governo, tiveram que construir casas precárias nos morros do Rio e chamaram essas regiões de favelas, em lembrança de Canudos. Isso mesmo, a República prometeu casas para os soldados se vencessem a batalha e venceram, mas ganharam em troca uma “banana” do governo. Canudos foi totalmente destruída, mas logo outra Canudos foi construída sobre os escombros da antiga. Getúlio Vargas querendo apagar da história a humilhação que o exército sofreu no passado e tirar da memória qualquer lembrança da revolta contra a República, mandou construir um açude onde foi a principal zona da guerra, sendo este açude de pouca utilidade para a região. Getúlio afundou a história sob as águas. Enfim, além do crime de guerra da “gravata vermelha”, condenado internacionalmente pela Convenção de Haia, o exército profanou o corpo de Antônio Conselheiro, o desenterrando e cortando sua cabeça com um facão. Sua cabeça foi enviada ao Rio de Janeiro para estudo, onde foram verificar se havia algo em seu cérebro que demonstrava alguma loucura. Não foi encontrada nenhuma anormalidade em seu cérebro.
Deixo agora um outro texto que fiz há dias sobre a relação de Os Sertões de Euclides da Cunha e o estudo dos sertões brasileiros na historiografia:
Euclides da Cunha é um caso interessante da literatura brasileira, polímata, com conhecimento profundo na geologia e geografia, tendo apenas uma obra conhecida pelo grande público, mas que tem influência notável na nossa cultura, principalmente no Nordeste onde até existe uma cidade com seu nome. Euclides da Cunha foi quem moldou a nossa visão de “sertão” como sendo a região árida nordestina e o “sertanejo” nordestino com seus típicos trejeitos caracterizados. Euclides da Cunha em “Os Sertões”, principalmente nos trechos em destaque do capítulo 1, é a contraposição do texto “O Sertão - um ‘outro’ geográfico” de Antonio Carlos Robert Moraes (2003); enquanto Antonio Carlos Robert Moraes diz que “o sertão não é uma materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica”, Euclides faz justamente o contrário, dá todas as características físicas, geográficas, geológicas, de vegetação, sociais e até culturais do sertão. Essas características “sertanejas” de Euclides da Cunha inclui o clima árido, desertificação, predominância de quartzitos, pouca vegetação com predominância de mandacarus e outras plantas suculentas, povo sofrido e maltrapilho, mas também muito forte e resistente.
Destaco que no capítulo “Terra Ignota” fala da cartografia do sertão baiano: “As nossas melhores cartas, enfeixando informes escassos, lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra ignota (...)”, ou seja, essa região nem era considerada geograficamente, sendo um vazio territorial repleto de gente, como a obra vai demonstrar com o grande fluxo de pessoas indo a Canudos por causa das pregações de Antônio Conselheiro. Este esquecimento do sertão nordestino em relação aos outros sertões do país demonstra muitas vezes a estratégia da Coroa Portuguesa, como o uso dos Tratados de Sesmarias, que não conseguiam cultivar todas as partes do que seria o Brasil, permanecendo o “sertão ideológico” a ser conquistado, sob o ponto de vista de Antonio Carlos Robert Moraes; o sertão nordestino é um caso claro que falha de governos em dominar eficazmente o local, sendo ocupada de forma irregular pelos mais diversos tipos de gente que não puderam construir suas vidas nas áreas urbanas e litorâneas, e o grupo formado em volta de Antônio Conselheiro demonstra forças paralelas aos governo ocupando não-oficialmente estes sertões.
Este vasto sertão natural descrito em pormenores por Euclides da Cunha é realmente uma área bastante considerável de terras, e ao mesmo tempo tem pequena importância para o poder vigente, como também pela vasta maioria da população que não vive ali. Da mesma maneira o magistral escritor Guimarães Rosa, com forte ligação com o sertão, diz em Sagarana (1946): “comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebeias dos campos-gerais, do Urucuia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim” (ROSA, Sagarana, p. 33, grifo nosso); e em outro conto da mesma obra diz: “Mas, como tudo é mesmo muito pequeno, e o sertão ainda é menor (...)” (ROSA, Sagarana, p. 342, grifo nosso). O sertão é grande e é pequeno, isso dependerá de quem o observa e de seus interesses. Aliás, Guimarães Rosa, que descreve muito bem outro tipo de sertão, consegue mostrar o esquecimento e vida sofrida nos sertões de mata fechada, mesmo sendo uma natureza oposta à do sertão, porém o sertão de Guimarães apresenta momentos de alegria, paz e maravilhamento e o sertão de Euclides é só sofrimento. Entretanto há a diferença de que Guimarães Rosa é um homem do sertão e Euclides da Cunha não.
O sertão Euclidiano tem a peculiar característica de não ter história: “o estranho território, a menos de quarenta léguas da antiga metrópole, predestinava-se a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história”; o “salvador” da perpetuação deste esquecimento é justamente Antônio Conselheiro, junto a seus seguidores. Outras figuras históricas surgiram nesse sertão nordestino onde as forças da natureza parecem ser mais agressivas com o homem, e este ao mesmo tempo se torna um forte por meio dessas dificuldades. Padre Cícero, Lampião, Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré, entre outros são figuras que trazem o sertão nordestino como figura de importância nacional, além de obras importantes da nossa literatura como “Morte e Vida Severina”, “Auto da Compadecida” e a literatura de cordel. Mas é difícil para a população em geral pensar na história do sertão nordestino nos primórdios da colonização, em saber como surgiram povoados no meio do “nada”, mais custoso é para o cidadão comum imaginar como famílias que vivem naquelas moradias isoladas de taipa em ambiente tão hostil. Felizmente temos recursos que a historiografia nos fornece para saber como foi a colonização e povoamento de áreas que aparentemente eram “isoladas”. Estes recursos não estavam disponíveis quando Euclides da Cunha escreveu sua obra, se estivessem disponíveis provavelmente alteraria um pouco o desenvolvimento de “Os Sertões”.
E o que a historiografia diz sobre os “esquecidos quatrocentos anos” da história do sertão? NUNES (2016, p. 88-89) nos explica que a bibliografia clássica diz que a ocupação do território se deu através da criação de animais, sendo o sertão um pasto para estes animais que produziram carne, leite, queijo e couro. Porém o autor também nos fala que não apenas a criação de animais possibilitou essa movimentação do litoral ao sertão, sendo a outra força que causou essa movimentação foi a cultura do algodão que disseminou um “corrida pelo algodão” naquela região. Mas essa região não era um deserto no sentido de ser vazio de população, havia indígenas. Segundo SILVA (2017, P. 261):
“Os brejos são áreas úmidas existentes no Semiárido com cobertura vegetal densa de espécies endêmicas e também da Mata Atlântica. Foram chamados de “áreas de exceção” ou “ilhas de umidades” em meio ao típico clima seco e quente da Caatinga no Agreste e Sertão nordestino. Nessas regiões, há milênios densamente povoada por seres humanos e animais, na parte montanhosa estão os denominados brejos de altitude, concentrando um maior índice anual de chuvas e fontes de água que possibilitam a lavoura de subsistência e para o comércio.”
Deste modo fica claro que a história do sertão foi relembrada pela historiografia e que não é história de apenas quatrocentos ou quinhentos anos, e sim de milênios.
Destaco aqui dois pontos do pensamento de Euclides da Cunha. O primeiro é seu naturalismo mesclado com positivismo; naturalismo por conta de crer que o ambiente é o único elemento da formação de caráter, sem considerar a história, características inatas de alguns indivíduos, alguma tendência metafísica da alma ou qualquer outra fator além do ambiente; o positivismo por conta de uma tendência evolutiva e crença numa história linear que tem como objetivo o progresso e com isso algumas nações e povos teriam progredido mais que outros. Dessa tendência do autor surge sua crítica à espiritualidade de Canudos, não entende a razão do ascetismo e da renúncia ao mundo, chamando Antônio Conselheiro de “gnóstico moderno”. Aqui há um conflito de ideais, da crença no progresso de Euclides da Cunha contra a crença de Antônio Conselheiro na decadência do mundo. Sendo assim, o autor vê o sertão que gerou uma figura com “problemas psíquicos” como Conselheiro, isso sob seu ponto de vista, como uma região problemática, um caldeirão de dificuldades, espiritualidade exótica e mistura de raças, e Antônio Conselheiro é o fruto natural desse ambiente, um ambiente que tende a gerar tipos com exagerada exaltação psicológica. Quando Euclides da Cunha diz que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” se refere a sua força física e resistência ao ambiente hostil, não é um forte de caráter, pois como foi dito acima, para Euclides, o sertanejo tem muitas fraquezas psicológicas. Do ponto de vista atual, essa visão preconceituosa, espírito de uma época, é devida ao naturalismo, positivismo, materialismo e cientificismo.
O segundo ponto é que Euclides da Cunha era um fervoroso republicano, mas Antônio Conselheiro era monarquista. Como Euclides crê que a república é a “evolução natural” e objetivamente melhor que a monarquia, logo quem segue alguém que defende o oposto é um retrógrado. Essa visão logicamente vai desembocar no pensamento de que uma região onde pessoas defendem algo “antiquado” é uma região atrasada. Este é outro pensamento que se perpetua: o sertão nordestino é uma região atrasada.
Concluindo esta análise e parecer, observo a tamanha importância da obra “Os Sertões” de Euclides da Cunha, pois nota-se que a escrita eloquente do autor moldou o sertão como conhecemos hoje, como a região semiárida do Nordeste. A historiografia busca relembrar que o termo “sertão” era utilizado para toda região interiorana do Brasil que se buscava explorar. Muitas vezes o sertão era visto como inabitado, mas é claro que isso é um erro relativo, pois havia indígenas; já o sertão de Euclides é habitado e às vezes com grandes populações. O sertão pode ser região do Nordeste, mas o termo já foi utilizado para a região amazônica (apesar de hoje não mais) e até mesmo no Paraná havia sertões; a “busca” pelo sertão era o intuito dos Tratados de Sesmarias, as expedições dos Bandeirantes e as expedições filosóficas; os sertões aparecem em escritos e obras de escritores como Padre Antônio Vieira, Ariano Suassuna, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, entre outros; o sertanejo é figura popular através de Tonico e Tinoco, Luiz Gonzaga, Mazzaropi e até mesmo com a atual música pseudo-sertaneja, lembrança corrompida e turvada do sertanejo raiz e do caipira. O sertão aparece de diversas formas e em vários momentos da história do Brasil, mas é a visão de Euclides da Cunha que sai vitoriosa. Ainda se pode dizer que “Os Sertões” de Euclides da Cunha tem uma força de atração cativante aos geógrafos e geólogos, pois suas minúcias de detalhes do ambiente é uma verdadeira aula. Será tarefa difícil ao historiador ir contra a visão euclidiana de sertão, pois além de se opor a um grande escritor, tem de ir contra a maré da visão popular moldada pelo escritor. A historiografia, assim como a filosofia e as ciências, traz conhecimentos sólidos, mas a literatura e a arte são as que geralmente formam o imaginário popular e causam mudanças sociais profundas, seja para o bem ou para o mal. Enfim, os historiadores e geógrafos tem uma difícil e gigante tarefa pela frente, assim como é gigante a criação de Euclides. Se Homero criou os deuses e Dante gerou o céu, o inferno e o purgatório, Euclides da Cunha inventou o nosso sertão.
REFERÊNCIAS
DA CUNHA, Euclides. Os sertões. Principis, 2021.
MORAES, Antonio Carlos Roberto, O Sertão – um “outro” geográfico, Terra Brasilis [Online], 4 - 5 | 2003, posto online no dia 05 novembro 2012, consultado o 04 dezembro 2021. URL: http://journals.openedition.org/terrabrasilis/341; DOI: https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.341
NUNES, A. M. B. Currais, cangalhas e vapores: dinâmicas de fronteira e conformação das estruturas social e fundiária nos “Sertões da Borborema” (1780-1920). 2016. 248 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais), Centro de Humanidades, Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba, Brasil, 2016, consultado em 06 de dezembro de 2021. URL: http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/1357
ROSA, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
SILVA, Edson. Índios no semiárido nordestino: (re) conhecendo sociodiversidades. CLIO: Revista Pesquisa Histórica, v. 35, n. 1, p. 254-272, 2017, consultado em 07 de dezembro de 2021. URL: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/24540/19827#