Marcos 14/10/2022
Seca e Massacre
Euclides da Cunha conseguiu transformar um livro-denúncia num clássico da Literatura Brasileira.
Publicada em 1902, Os Sertões é a obra mais emblemática do autor. Dentro do Pré-modernismo, a obra regionalista trata da Guerra de Canudos, liderada pelo eremita religioso Antônio Conselheiro, no interior da Bahia, entre 1896 e 1897.
Nesse tempo, várias agitações sociais acontecia pelo país. A Campanha de Canudos foi uma delas e iniciou-se em 1896, no sertão abandonado, o massacre cometido nessa revolta do exército brasileiro contra os fiéis de Antônio Conselheiro e da comunidade do Arraial de Canudos, demonstra os erros cometidos pela República, por não avaliar de forma assertiva os problemas nacionais. A Revolta de Canudos foi vista perante os republicanos como uma ameaça monarquista, que defendia o regime governamental anterior.
Euclides da Cunha trabalhava no jornal O Estado de São Paulo, recebia as informações sobre o conflito como uma espécie de "golpe monarquista" e retratava em suas matérias. No entanto, quando realmente foi a campo, compreendeu as condições subumanas daquele povo esquecido, àquela revolta era, na verdade, contra a estrutura que já se perpetuava por três séculos de descaso com o nordeste. O livro descreve e denuncia o extermínio de cerca de 25 mil sertanejos do interior baiano.
O livro é dividido em três partes:
A terra - uma descrição detalhada da geologia, do clima, das riquezas naturais e demais aspectos referentes a região;
O homem - elabora a gênese do brasileiro, a miscigenação, a origem do mestiço, o sertanejo e outros variantes etnológicos do país. Nessa parte, conhece-se sobre Antônio Conselheiro, sua origem e motivação religiosa;
A luta - retrata o conflito, aborda sobre as locações e as figuras envolvidas no entrevero. Cunha justifica a revolta, relata sobre a rotina e denuncia a barbaridade, o crime que se abateu com aquele povo, fato que marcou a história do Brasil.
Euclides da Cunha tanto pensava artisticamente quanto logicamente, Os Sertões é uma obra artística amparada por estudos científicos e fatos. Por vezes, em Os Sertões, Euclides acaba por ceder as emoções, devido a crueldade do homem, pela ignorância dos poderosos, pela ideológica e pela predominância de uma religiosidade exarcerbada dos conselheiristas. Os Sertões é, definitivamente, um livro de literatura e também de história.
Compreender o brasileiro era uma ideia dos autores modernistas. O Determinismo (corrente filosófica vigente na escola pré-modernista) prega que é necessário entender o meio para poder entender o indivíduo. O meio molda o indivíduo. Visto que o meio é retrógrado, isolado da civilização, ou melhor, esquecido. Temos então, o sertanejo, um homem sofrido, resistente, desconfiado, envolto em misticismo, crendice e religiosidade.
Os Sertões é uma obra de fôlego, extensa e por vezes, difícil de compreender. A sua linguagem mista, jornalística/literária não é um grande problema, porém há muitos termos científicos e um emaranhado histórico e muitos envolvidos na luta, isso exige uma atenção apurada do leitor. Não é um enredo fácil, contudo dá para ter um noção geral do que foi esse momento histórico.
Confesso que arrastei-me muitas vezes na leitura, esperava que a obra abordasse mais sobre Conselheiro (fiquei decepcionado), entretanto, percebo o porquê da sua relevância, realmente é livro que cumpre com o que pretende e não passa a mão em nenhum dos personagens. Cunha apenas relata e se indigna da má interpretação e falta de empatia do homem, que geralmente resolve tudo com guerra.
É um livro intenso e triste. A literatura tem esse poder bem como o jornalismo de carregar o grito de revolta, o lamento do sangue de inocentes, as páginas marcadas pela dor de famílias perdidas, o homem que sofre com a seca, que sente sede e fome, o povo esquecido pelas autoridades, tudo isso servindo como uma ferramenta de alerta para que barbáries desse nível não venham mais a acontecer.
"Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável ? o homem. Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da História, o papel de um terrível fazedor de desertos."
- Os Sertões (Euclides da Cunha)