Pedro Nabuco 01/07/2020
A poesia absurda da guerra
Terminei há algum tempo a leitura dessa estória maravilhosa, mas só agora calhou-me escrever uma resenha. Llosa conta a história da guerra de canudos recriando um sertão que: se por um lado é romantizado, por outro é lido social e politicamente de forma bastante perspicaz.
Em sua tese de doutorado em história, Durval Muniz, faz uma genealogia da criação do Nordeste, não só enquanto espaço geográfico, mas principalmente como entidade discursiva. A região do atraso, dos humilhados, dos brutos, dos avessos a modernidade é uma invenção. Um discurso que se sobrepõe, ou é sobreposto por forças políticas e econômicas, a outros tantos possíveis e quiçá mais verdadeiros.
Ou como canta Belchior, em 'Conheço Meu Lugar': "nordeste é uma ficção, nordeste nunca houve".
E é este Nordeste que o peruano nos conta, o inventado e sonhado. O pano de fundo de sua narrativa, e grande protagonista do livro, é um evento real. O maior conflito armado do nascimento da República brasileira.
Toda obra é marcada por um confronto latente entre a realidade e a ficção. Dois dos principais personagens, bem o exemplificam:
Um escocês idealista que vê em Canudos o florescer da revolução humana contra seus grandes opressores. Assim, acredita que ele, como revolucionário que é, tem como missão ajudar os sertanejos na guerra contra o exército republicano a todo custo. Mesmo mal conseguindo entender e ser entendido ao conversar com os sertanejos, Galileo Gall acredita firmemente que o religioso povo do Conselheiro é o gérmen da realização de todos os projetos progressistas, os quais passou boa parte da vida lendo e depois a escrever.
Doutra parte há uma outra espécie de idealista, um coronel do exército. Condecorado por bravura ao esmagar de modo implacável outras revoltas contra a República. Coronel Moreira César vai a Canudos firme de que destruirá a resistência dos monarquistas brasileiros, em conluio com os ingleses, aos avanços gloriosos que a República trazia. Ao chegar numa das regiões mais áridas do país e se deparar com a sorte a que estão lançados muitos brasileiros o coronel se consterna e verdadeiramente sofre pelo seu povo. Aqueles miseráveis e esquecidos estariam realmente sendo financiados pela coroa britânica para se revoltar contra a República? As coisas se tornam menos simples do que pareciam, todavia, para famigerado Corta Cabeças não há hesitações em cumprir seu propósito republicano e jacobino.
Dois personagens contraditórios e apaixonados, que Llosa usa para demonstrar como as certezas cultivadas pelos homens são incapazes de dar conta da realidade.
Pelo fato de o Conselheiro ser contra a separação entre Igreja e Estado, acreditava que a República era o anticristo, assim, instituiu em Canudos o casamento civil e não aceitava utilizar o dinheiro republicano, Gall enxergava ali uma comunidade que se libertava das amarras do Estado para se guiar por seus próprios desígnios. E ele não estava de todo errado, porém passava longe de acertar.
Também Moreira César, que acreditava estar contendo a maior das investidas dos monarquistas contra a recém fundada República, acreditando inclusive na participação de Gall como um agente infiltrado da coroa britânica, sem perceber que a narrativa que ele comprara como uma rebelião organizada fora inventada por políticos baianos do partido republicano que, com a vinda do exército ao estado buscava enfraquecer os políticos monarquistas da Bahia.
Há outros personagens, como o Barão de Canabrava, político monarquista e grande dono de terras, que em vez de buscarem em Canudos a projeção de seus ideais, se interrogam diante de seu absurdo. Como milhares de pessoas abandonaram suas casas para seguir um louco que anda a pregar pelos sertões? Tolice cogitar que se trate de um santo, mas que poderes terá para manter esse povo unido após o ataque de duas expedições do exército? Difícil compreender.
Que significou a guerra de Canudos, então? Llosa não responde, pois a explicação, ao fim das contas, é impossível. O nobel de literatura então pinta em palavras um grande quadro do absurdo da guerra, e como Camus nos ensina, a tragédia do absurdo não está somente na dor, na doença e na morte, mas sobretudo, que nesse mundo condenado também sobreviva a beleza, a honra, a glória, a comunhão entre os que lutam juntos.
"Esse bichinho do campo, esse ser rústico que só podia ter trocado para pior desde que saiu dos aposentos de Estela, tinha estado misturado, também, ao destino do homem que tinha à frente. Porque o jornalista havia dito, literalmente, essas inconcebíveis palavras: “Mas, justamente, quando começou a desfazer o mundo e foi o apogeu do horror, eu, embora lhe pareça mentira, comecei a ser feliz”. Outra vez se apoderou do Barão essa sensação de irrealidade, de sonho, de ficção, em que estava acostumado a precipitá-lo Canudos. Essas casualidades, coincidências e associações o punham sobre brasas. Sabia o jornalista que Galileo Gall tinha violado a Jurema? Não o perguntou, ficou perplexo pensando nas estranhas geografias do azar, nessa ordem clandestina, nessa inescrutável lei da história dos povos e dos indivíduos que aproximava, afastava, inimizava e aliava caprichosamente a uns e a outros." (pág. 625)