spoiler visualizarRoberto 09/06/2021
Um obscuro herege é resgatado do esquecimento
Resumo
Menocchio é a personagem central na trama, cujo principal ofício era "moleiro". Nasceu em 1532 numa aldeia chamada Montereale.
O fato de saber ler, escrever e somar, deve tê-lo ajudado a ter uma posição de relativa importância, passando por vários cargos em seu microcosmo social. Menocchio, se não era uma autoridade na comunidade, também não era qualquer um, gozando de relativo prestígio. Principalmente, Menocchio não reconhecia na hierarquia eclesiástica qualquer autoridade nas questões de fé."
Em 1583 fora acusado de heresia, sendo que era relativamente comum ele discutir e tentar difundir, suas opiniões sobre a fé. A autoridade religiosa local, um pároco chamado Dom Odorico Vorai, foi o provável anônimo delator.
Menocchio, quando na presença de um magistrado secular (da República), abandonou qualquer reticência ao falar, criticando radicalmente os sacramentos. Ele projetava em suas ideias uma tradição oral simples, articulada com as páginas que lera, de identidade entre o homem e o mundo (natureza), familiar aos camponeses, de onde ele deduzia haver uma identidade também entre a natureza e Deus, já que o homem havia sido feito à imagem Dele.
Ou seja, Deus seria o mundo, a natureza, nada além de ar, terra, fogo e água. Opinava que morto o corpo, a alma também morre, pois retorna à natureza. Contudo o moleiro concebia a existência de um caos primordial, talvez inspirado em uma tradição cosmológica quase esquecida, caos este do qual surgiram Deus e os anjos, com naturezas divinas portanto diferentes do homem – tal como o queijo e os vermes. A ideia de um Paraíso era cara à Menocchio justamente pela dificuldade de acolher a ideia da ressureição da alma.
Essas ideias de Menocchio provavelmente não saíram apenas de sua cabeça. Ele colocava seu raciocínio em primeiro plano e citava livros, que chegavam à ele por uma rede de circulação, sendo mais da metade, emprestados. Não eram exatamente fontes de seu pensamento os livros, mas também não apenas um pretexto. Passagens eram ocultadas, exageradas, com um choque entre a página impressa e a cultura oral na qual o moleiro se inspirara.
Menocchio invariavelmente tornava um detalhe o centro de seu discurso, ou uma narração em seu contrário; era parcial e arbitrário, tendente à uma religiosidade prática, reduzida à moralidade; lia como atuais assuntos de centenas de anos antes. Era uma reelaboração da escrita com um resíduo da cultura oral, servindo-se de pensamentos alheios que exprimia um materialismo elementar de gerações de camponeses, com evidente densidade metafórica.
Findo o interrogatório, o grande tamanho da sentença emitida, de cárcere perpétuo, revela a dificuldade dos juízes. O filho de Menocchio espalhou pela cidade o boato de que o pai era "louco" ou "possesso", talvez como forma de tentar amenizar a acusação que o pai sofrera. Menocchio, contudo, dizia estar falando sério e dentro da razão.
O contexto também ainda era mais duro, é possível que uns 100 a 150 anos depois de 1583, o artifício do filho do moleirodesse certo, e Menocchio seria trancado em um hospício por delírio religioso. Contudo não era o caso daquela época.
Condenado, retomou seu lugar na comunidade mas, fiel aos velhos pensamentos, foi novamente preso. A ideia de um Deus criador ainda lhe era estranha. Torturado, não revelou nomes, afirmara ter lido por conta própria.
Sentia solidão e necessidade de repartir a cosmologia, igualando-se aos poderosos. Essa cultura quase exclusivamente oral das classes subalternas, que emerge no discurso de Menocchio e registrado por meio da inquisição, não costuma deixar pistas.
Análise
O Queijo e os Vermes trata-se de uma valiosa contribuição ao que chamamos de “História das Mentalidades”, ou seja, evitar a redução completa da História à ciência, valorizando o mental, o papel das ideias, recuperando o sentido inicial da palavra História enquanto uma narração, um gênero literário. Remete ao velho confronto entre a história quantitativa versus história qualitativa.
A obra é relevante face a escassez de fontes a respeito das classes subalternas, quando se utiliza principalmente as fontes que não são “objetivas”. Também o pano de fundo onde há as relações conflituosas entre a cultura produzida pelas classes populares e a cultura imposta às classes populares deve ser enaltecido.
É um livro voltado aos estudiosos mas também ao público leigo. Insere-se em um papel dos historiadores em um compromisso não somente com os Reis, mas também com os pedreiros anônimos.