Andrea 14/09/2014
Resenha Capão Pecado - Ferréz
Um grito vindo de um canto esquecido da terceira maior cidade do planeta. Assim é Capão Pecado, primeiro romance ficcional de Ferréz, lançado em 2000 pela Labortexto Editorial e reeditado pela Editora Objetiva (2005, 149p). Esta versão da obra não é ilustrada por fotos e apresenta capa remodelada, nova introdução e participações inéditas.
De forma dura e crua, o narrador passeia pela região do Capão Redondo, na periferia de São Paulo - onde o autor nasceu, criou-se e vive até hoje - descrevendo vivências de seres humanos tentando sobreviver em meio a um contexto de violência e exclusão social. O jovem Rael, personagem central, é o fio condutor da história. Em torno dele, os enredos desenrolam-se, os demais personagens são apresentados e o bairro - verdadeiro protagonista da obra - revela-se ao leitor.
Rael dá voz a tantos outros jovens que seguem percursos semelhantes: pai alcoólatra, poucos recursos, quase nenhuma oportunidade, final trágico. Muda-se para o Capão ainda criança. Desde cedo, conhece as agruras de uma vida sem recursos. Trabalha em uma padaria, posteriormente em uma metalúrgica. À noite, costuma ler. Apaixona-se pela namorada de um amigo, casa, tem um filho. Enquanto sua vida caminha, Rael assiste de perto a queda de muitos colegas e vizinhos. Apesar da vontade de trilhar um percurso diferente, ele não consegue escapar. A violência é a resposta para quase tudo no Capão Redondo. Rael não foge à regra.
As dificuldades características dos grupos sociais de baixa renda são explicitadas de forma seca, sem conotações ou meias-palavras. A violência está presente em quase todas as páginas do livro. Sangue, revolta e desesperança preenchem os capítulos que se sucedem para construir, através das palavras, um retrato do Capão Redondo, retrato este que pode também ilustrar a realidade de quase todas as favelas e comunidades periféricas das grandes cidades brasileiras.
Ferréz expõe, de dentro para fora, um mundo em que o convívio com as drogas (do uso ao tráfico), o abuso de álcool, o desemprego, o sexo bruto e a violência constroem cada parede, cada calçada e cada degrau a ser galgado na luta pela sobrevivência diária. Sendo ele próprio um sobrevivente do Capão Redondo, enfrentou cada um desses obstáculos. Assim, incumbe-se da missão de, sem ponderações, trazer à tona esse universo que poucos buscam olhar.
Na ânsia por clamar por este olhar, contudo, o autor faz algumas escolhas contestáveis. Ao optar pela narração em terceira pessoa, de imediato, perde em subjetividade e emoção. Faltam diálogos internos e questionamentos aprofundados. Além disso, a narração em primeira pessoa poderia aproximar e criar empatia maior em um leitor alheio à realidade das periferias. Em alguns momentos, a sensação é a de que o livro busca validar atitudes e saídas que, em uma situação de miséria e desesperança, podem ser as mais óbvias, mas que, definitivamente, não são as únicas.
A construção do texto também foge do convencional, aproximando-se muito de uma transcrição da linguagem oral. O encadeamento das ideias não segue o padrão usual (técnicas de coesão/coerência), e existem algumas mudanças inadequadas de parágrafo - alteração de parágrafo sem novo assunto. A divisão sem lógica dos capítulos - em alguns momentos, o autor introduz o próximo assunto ao final de um capítulo; em outros pontos, pula para outra situação ou personagem sem utilizar qualquer gancho - por vezes atrapalha a compreensão do enredo. A variante lingüística utilizada - a gíria da periferia paulistana - nem sempre é respeitada, o que pode levar à sensação de estranheza e desconforto. Tais aspectos formais tendem a dificultar a leitura ou afastar leitores acostumados a textos mais coesos.
Em contraponto, essas opções da chamada Literatura Marginal atraem o jovem em situação de risco social e pouco habituado à leitura, que, ao identificar-se com a obra tem a oportunidade de construir um vínculo com a literatura e de visualizar-se como ator social, e não como mera vítima do sistema sócio-econômico-cultural. A antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, pesquisadora da produção cultural da periferia define: "Interessada nos leitores de diferentes perfis, a literatura marginal-periférica sempre teve as populações marginalizadas como público-alvo definido". Este, talvez, seja o maior mérito da obra. Faltam oportunidades nas periferias. Faltam personagens como Rael nos livros, filmes, novelas. Ao trazer o excluído para o papel de protagonista, ao levar a realidade negada pelos meios de entretenimento ao primeiro plano de sua história, Ferréz abre portas e expande horizontes àqueles que pouco são lembrados.
O próprio autor é exemplo das possibilidades abertas pelo mergulho nas artes. Ferréz - ou Reginaldo Ferreira da Silva, seu nome real - já publicou seis obras, sendo dois romances (Capão Pecado, 2000 e Manual Prático do Ódio, 2003), um livro de poemas (Fortaleza da Desilusão, 1997), um de contos (Ninguém é Inocente em São Paulo, 2006), um livro infantil (Amanhecer Esmeralda, 2005) e uma história em quadrinhos (Inimigos não Levam Flores, 2006). É, ainda, colaborador da revista Caros Amigos desde 2000 e conselheiro editorial do jornal Le Mond Diplomatic Brasil.
A análise de textos do autor, posteriores à Capão Pecado, leva à percepção de que Ferréz lapidou seu estilo, enxugando excessos e fazendo melhor uso das entrelinhas para sua militância. Recebeu, em 2002, o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) pelo Melhor Projeto de Literatura para a revista Literatura Marginal; em 2005, o Prêmio Hútuz pelo livro Manual Prático do Ódio e o Prêmio Cooperifa pelo conjunto da obra e pelo projeto Literatura Marginal e em 2006 o Prêmio Zumbi dos Palmares. Isso demonstra que a ascensão e a visibilidade adquiridas com o primeiro romance, abriram portas e possibilitaram a Ferréz transpor as barreiras da periferia para desenvolver e viver de sua Literatura.