Lucas 25/02/2019
A política como ciência ou como instrumento de dominação?
O termo "maquiavélico" possui várias conotações negativas. Significa astúcia, falsidade e antiética, conceitos surgidos a partir do italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), tido como o pai da ciência política moderna. O Príncipe, a sua obra-prima, escrita em 1513, é o trabalho que o trouxe essa rotulação (postumamente, já que a obra só foi publicada em 1532), pois ele retrata em vinte e seis capítulos uma infinidade de "conselhos" úteis ao governante da época e, em parte, ao de hoje.
O Príncipe é uma das obras mais controversas e discutidas de todos os tempos, mas, antes de tecer qualquer análise a respeito, é preciso que o indivíduo avalie o contexto histórico em que foi escrita e a colocação do autor dentro desse cenário. Entre o século XV e XVI, a Itália era uma nação dividida, comandada por vários ducados que, em nenhum momento, pensavam em unidade e harmonia. Um desses ducados, se é que pode ser assim chamado, era a Igreja Católica, já então estabelecida em Roma. Por séculos, a Itália foi palco de sangrentos conflitos e invasões externas (especialmente da França e da Espanha) que, em meio a tantas discussões internas e cada um a seu modo, viam grandes oportunidades de dominação e exploração de uma região riquíssima, seja pela influência da Igreja ou, principalmente, pelo fato de estar banhada pelo Mar Mediterrâneo.
Dentro disso, Maquiavel foi, na maior parte da sua vida, um diplomata, que servia à dinastia dos Médici, um dos ducados citados anteriormente. O Príncipe foi escrito durante um exílio e é resultado de várias experiências próprias do autor e pesquisas históricas a respeito dos inúmeros conflitos que vinham marcando a região desde tempos imemoriais. A obra foi dedicada a Lourenço de Médici, governante de Florença e na qual Maquiavel depositava esperanças de vir a ser o responsável pela almejada união da Itália.
Essa dedicatória é uma das diversas polêmicas que cercam O Príncipe. Por muitas décadas foi entendida como uma tentativa de bajulação, capaz de sensibilizar o governante sobre as ideias até então chocantes do autor. Mas a tese mais aceita, até por outros trabalhos de Maquiavel, era a de que ele era um grande patriota. E por meio das suas viagens por outras regiões da Europa, ele acreditava que somente um rei ou governante seria capaz de unir a Itália e trazê-la de forma relevante ao grupo de nações desenvolvidas do Velho Continente. O Príncipe funciona, dentro desse raciocínio, como um manual de práticas políticas que esse governante deveria ter, no entendimento de Maquiavel, para apaziguar os ânimos e exercer seu poder na Itália.
O livro foi estarrecedor para a época porque foi o primeiro escrito científico dentro do campo da política e das relações entre nações que se baseava no empirismo e no realismo, em detrimento à ideia medieval de poder da Igreja como organismo soberano por trás das relações políticas. O Príncipe trata a Igreja como um elemento social importante, mas de uma forma meramente material, sem vieses místicos. Para ele, a política serve apenas como um mantenedor do Estado, não podendo ser ela confundida com a forma com que a Igreja atuava na sociedade. Fato é que O Príncipe foi anexado à relação de livros proibidos pela Igreja Católica, o Index Librorum Prohibitorum (curioso é que essa relação só foi ser abolida pela Igreja na segunda metade do século XX).
Mas a face prática determinista da política foi o campo mais controverso da obra, e que permanece até hoje, seja guiando as condutas políticas, seja permanecendo com esse caráter duvidoso. Maquiavel defendeu uma abordagem demagógica para demonstrar o papel do bom político, que, segundo ele, era importante que possuísse um perfil dedicado, transparente, correto e honesto, mas o mais fundamental é que ele apenas aparentasse ter essas qualidades. Segundo a obra, um bom político precisa ser mais astuto que inteligente, e o seu sucesso como governante estava atrelado ao convencimento que ele conseguiria passar ao seu povo (ou súditos) com relação a sua postura. Maquiavel foi o primeiro que se preocupou na promoção da imagem do político, mas justamente pelo fato de restringir esse foco apenas à imagem e não necessariamente à sua conduta foi o que gerou e ainda gera controversas. Outros pontos duvidosos se relacionam à dominação e submissão de povos conquistados e a questão até hoje premente do perfil de um líder, o "ser amado" ou "ser odiado" pelo povo (Maquiavel expõe uma terceira visão, que muito contribui para distinção prática de um ou outro perfil).
A verdade é que, se analisada de uma ótica friamente racional, sem maiores reflexos à população de um Reino ou de um país, muitas das teorias de Maquiavel são válidas para que o governante consiga manejar sua influência e poder com eficiência. O autor trouxe, dentre outras coisas, o viés sempre discutível da moral x imoral, e na política ele ensina que ser indigno é muitas vezes a única forma de exercício do poder. Partindo para uma abordagem mais pessoal, não é factível que essa abordagem mais material seja confundida com a corrupção. A política, pura e simplesmente, é um elemento indispensável a qualquer tipo de sociedade e ela nada mais é que um jogo de interesses. Agora, podem ser extraídas algumas conclusões óbvias disso. A mais percebível é a de que quando este jogo de interesses se resume à troca de favores entre governantes e ministros ou qualquer outro personagem que não seja o povo e que tenha licitude legal (e não necessariamente moral), está dentro da definição que Maquiavel quis trazer à política. Pode e deve ser motivo de discussão, mas não deve ser confundido com a corrupção, esse mal universal, que ocorre quando este mesmo jogo de interesses atinge a população de alguma forma, tendo suporte legal ou não (isso só avaliando o escopo mais macrossocial da corrupção, porque se for avaliado a questão individual ou a corrupção no dia a dia, o assunto é inesgotável).
Por mais que seja secular, O Príncipe possui práticas universais, como o atrelamento entre Estado e Forças Armadas e as relações que um governante deve fazer para se manter e aumentar o seu poder. Uma prova da validade da obra no decorrer dos séculos são as notas que Napoleão Bonaparte (1769-1821) fez a vários trechos da narrativa (e que estão transcritas na razoável edição da editora Jardim dos Livros), nas quais se ressalta a associação entre as ações do imperador francês e as práticas de Maquiavel em alguns momentos e a ironia e até bom humor com que Napoleão trata certas ideias maquiavélicas enquanto imperador, cônsul e exilado político. Apesar disso, um aspecto quase contemporâneo à obra e que poderia ser explorado teria trazido um novo universo de teorias, que é a invenção da imprensa no início do século XV. É interessante imaginar quais as propostas que Maquiavel poderia ter sobre a facilidade de proliferação das informações causada pela invenção do alemão Gutenberg (1398-1468), especialmente nos debates acerca da construção da imagem do príncipe. É provável que essa lacuna tenha sido deixada não intencionalmente, mas ainda pouca popularidade da invenção àquela época.
O Príncipe é uma obra universal, de discussões inesgotáveis e que jamais deixará de polemizar. Porém, deve ser entendido como um trabalho empírico, de um patriota italiano, que acreditava que o seu país deveria ser unificado sobre a rege de um único indivíduo cercado de ministros. Não é um manual de demagogia, tampouco uma prova de que os fins justificam os meios. Maquiavel demonstrou a política como ela era e é em muitos elementos ainda hoje, sem o intuito de ser doutrinador ou fundador da corrupção. A leitura de sua obra-prima é necessária para que se entenda a política como ciência, sem o viés sujo tão associado a ela atualmente, em meio a ideologias de validade questionável.