Bruno Oliveira 14/11/2018Breve comentário sobre o livro de Mary Del PrioreConfesso que abandonei duas vezes o livro de Mary Del Priore antes de conseguir terminá-lo. Do outro lado A História do sobrenatural e do espiritismo possui um prefácio terrivelmente mal escrito que me fez crer que o restante do livro seria igualmente ruim. Na terceira vez em que me confrontei com aquele texto desagradável, porém, consegui forças para continuar avançando. Para a minha sorte, o problema do prefácio parece ser alguma sobra de uma revisão mal feita, pois o restante do livro flui com facilidade.
Apesar disso, tive uma experiência morna com a obra, sobretudo porque algumas posições teóricas da autora limitaram meu interesse e atrapalharam minha fruição. Por isso, em vez de resenhar o livro aqui, tentarei detalhar neste texto minhas críticas em relação ao texto de Del Priore.
Texto versus ilustrações:
Como A História do sobrenatural e do espiritismo aborda diversas personalidades e práticas coletivas (as sessões de mesas girantes, por exemplo) a autora tem muito o que mostrar visualmente. Aliás, as ilustrações contidas no livro são muito interessantes, pois desvelam o imaginário de uma época e apresentam todo um universo próprio, contudo, elas estão apresentadas numa sessão à parte do livro e precisam ser vistas em um momento póstumo à leitura, perdendo sua interlocução com o texto. É preciso ler as ilustrações e depois tentar retomar os textos que as esclarecem, ou ler o texto e tentar adivinhar quais ilustrações são referentes a quais excertos, num entendiante movimento de ida e volta que só atrapalha a fruição do livro.
Muitos detalhes; pouco rigor:
Ainda que o livro de Del Priore seja bastante informativo e traga muitos dados interessantes, ele também é um bocado frouxo e transmite a impressão de falta de rigor e cuidado, pois suas informações são frequentemente ambíguas e precisariam de um esclarecimento conceitual mais rigoroso que a autora não faz. Talvez sequer perceba a necessidade de fazer, não sei dizer.
Cito um exemplo: “Os dogmas principais do espiritismo eram a “reencarnação” e a “pluralidade de mundos” […]” (p.55). Para começar, é comum que espíritas impliquem com a palavra “dogma” quando aplicada à sua religião, pois tal palavra indicaria aquelas normas indiscutíveis contidas nas religiões. Supostamente, o espiritismo não teria quaisquer normas desse tipo, consequentemente, o leitor que ler a obra com os olhos de um espírita terá motivos para negar o que a historiadora diz. Penso porém que é possível defendê-la nesse caso, bastando interpretarmos que a palavra dogma de uma maneira menos pejorativa, como um termo que designa as teses fundamentais de uma doutrina sem as quais ela não existe. Sinceramente, acho que é a isso que Del Priore está se referendo, inclusive, concordo com ela a esse respeito. Não não há espiritismo sem a crença na “reencarnação” e na “pluralidade de mundos”, como também seria preciso engordar bastante essa lista acrescentando aí a existência dos fenômenos mediúnicos, dos espíritos, etc. A lista é enorme, na verdade. Penso que a historiadora mencionou apenas dois dogmas porque pretendia tratar especificamente deles logo mais, contudo, mesmo que façamos esse trabalho de entender a posição da autora e defendê-la de uma leitura enviesada, seu texto poderia dispensar o leitor disso ao apresentar os elementos que anulariam essa leitura. Uma nota de rodapé na palavra dogma, explicando o que autora entende por dogma e o que seriam dogmas no espiritismo faz falta nesse excerto, por exemplo. Imprecisões ou ausências como essa por todo o livro, facilitando leituras ruins, má compreensões ou simplesmente limitando o livro em pontos nos quais ele poderia orientar melhor o leitor.
Lembro de uma colega de graduação que tinha um sério problema de escrita: seus textos eram desenrolares descritivos, quer dizer, eles meramente relatavam aquilo que ela tinha visto ou lido na exata ordem em que as coisas tivessem se apresentado. Minha colega era incapaz de colocar aos fatos qualquer questão; apenas os repetia sem perceber que eles não eram tácitos e estavam impregnados de ideologias, sendo preciso lidar com tais coisas para apresentá-los num texto crítico. Retomo essa lembrança porque o livro de Mary Del Priore se parece com os textos de minha colega, não colocando questões nem para si, nem para o leitor, e avançando pela apresentação de fatos sucedidos de fatos, personagens sucedidos por outros personagens, que não necessariamente confluem para uma interpretação do assunto; somente para sua exposição. A autora parece jamais ter tido questões sobre o tema, ela apenas o aprendeu.
A narrativa sobre a história:
Creio que a origem de meus incômodos com a obra seja o fato da autora sempre preferir a narrativa em vez do trabalho investigativo rigoroso. Seu livro faz uma exposição geral da história da espiritualidade no Brasil, entretanto, evita discutir minúcias de quaisquer tipos, inclusive quando trata do espiritismo. Del Priore pouco aborda questões controversas a respeito da história dessa religião, o que acaba dando um tom um tanto “oficialesco” ao livro, como se a autora evitasse desagradar os adeptos desse credo. Tudo soa plácido, confortável demais, e somos pouco informados acerca dos conflitos internos do espiritismo, suas linhas concorrentes, as conhecidas fraudes em que alguns de seus membros se meteram e coisas assim. A história do sobrenatural e do espiritismo está muito abaixo de um trabalho como O babuíno de madame Blavatsky, por exemplo, que vai fundo no processo tortuoso de consolidação de uma religião.
A despeito da quantidade de informações que a autora apresenta, seu texto suscita dúvidas se ela sabe mesmo a extensão daquilo com que está lidando ou se decidiu propositalmente ficar na superfície do assunto para priorizar a divulgação científica. A investigação sobre as bases teóricas do espiritismo não vai muito além do óbvio sobre Mesmer e Pestalozzi, por exemplo, o que me fez lembrar da última vez em que li um texto de Kardec e era apresentada, de uma maneira não muito sofisticada, alguma prova da existência de deus a partir da noção de causa e efeito. Era um eco de Tomás de Aquino, sem dúvidas. Kardec nitidamente sabia “por ouvir dizer” algo das clássicas provas da existência de deus, mas de forma rudimentar, sem o requinte que elas possuem nas obras dos filósofos medievais. Diante disso, é possível colocar questões do tipo: quais seriam as leituras de Kardek? Um bom estudo sobre o espiritismo poderia esclarecer questões como essa que, pelo que sei, seguem em aberto, embora possam ser notadas por qualquer leitor com algum conhecimento da história do pensamento científico e filosófico ocidental. Quando abri o livro de Del Priore, imaginei que essas questões fossem ao menos mencionadas nele, que a autora fosse ao menos abrir caminhos para o leitor trilhar por si mesmo segundo seu interesse, todavia, a historiadora dificilmente se desvia daquilo que é amplamente conhecido a respeito do espiritismo e promove poucas reflexões dentro dos temas tradicionais. Por conta disso, não me causou espanto que o último capítulo de seu livro, a conclusão, fosse tão curto mirrado, com corolários de pouca penetração.
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