Flávia Menezes 05/08/2024
MORREMOS TANTAS VEZES, E AINDA ASSIM, CONTINUAMOS VIVENDO.
?Adeus às Armas" (no original ?A Farewell to Arms?) é um romance com tom autobiográfico do escritor norte-americano Ernest Hemingway, publicado em 1929. No dia em que Hemingway finalizou este livro, foi o mesmo em que ocorreu o colapso econômico nos Estados Unidos (a Crise de 1929), que se espalhou por todo o mundo capitalista.
Neste romance, Hemingway conta a história do tenente norte-americano Frederic Henry, que serve no exército italiano durante a Primeira Guerra Mundial como condutor de ambulâncias, e que após ser gravemente ferido, conhece uma enfermeira inglesa, Catherine, por quem se apaixona e com quem vive uma intensa relação amorosa.
A temática deste livro traz uma vivência pessoal da vida do autor, que também esteve na Primeira Guerra Mundial como motorista de ambulâncias, tendo sido igualmente ferido, e, conforme os arquivos governamentais americanos, assim como o seu protagonista, Hemingway teria bravamente carregado um soldado italiano nas costas, sendo novamente atingindo por uma arma de fogo, recebendo assim uma Medalha de Prata pelo governo italiano por seu ato de bravura.
O escritor permaneceu seis meses em um hospital de Milão se recuperando, e foi onde conheceu e se apaixonou por uma enfermeira da Cruz Vermelha Americana, chamada Agnes von Kurowsky. Diferente do que acontece em ?Adeus às Armas? (que não darei spoilers aqui!), quando Hemingway retorna para o seu país, recebe uma carta de Agnes dizendo que não irá se casar com ele por ter se apaixonado por um oficial italiano.
Sua experiência de viagem, combate e amor (embora com um final nada feliz), modificou drasticamente a vida de Hemingway, ampliando assim a sua perspectiva sobre a vida.
Apesar de Henry não ter tido o mesmo final que Hemingway, ainda assim, escrever o final de ?Adeus às Armas? não foi algo simples para o escritor, que o teria feito umas 47 vezes. Entre as jóias da Coleção de Hemingway, estão as 44 páginas do manuscrito contendo uma pontuação de finais diferentes, que frequentemente são usadas por professores de inglês para fornecer aos seus alunos um vislumbre de Hemingway em ação.
Esses múltiplos finais podem ser encontrados em manuscritos do autor que estão na Biblioteca e Museu Presidencial John F. Kennedy, em Boston. Em 1958, Hemingway teria dito em uma entrevista com George Plimpton para a ?The Paris Review? que escreveu todos esses finais porque estava tendo dificuldades em ?acertar as palavras?.
F. Scott Fitzgerald, o autor de ?O Grande Gatsby?, depois de ler o rascunho inicial, sugeriu a Hemingway que terminasse o livro com uma de suas passagens mais memoráveis: "O mundo quebra todo mundo e depois muitos são fortes nos lugares quebrados. Mas aqueles que não vão quebrá-lo matam. Ele mata os muito bons, os muito gentis e os muito corajosos imparcialmente. Se você não é nenhum desses, pode ter certeza de que ele vai te matar também, mas não haverá pressa especial." Em resposta a carta de 10 páginas de Fitzgerald, na letra de Hemingway está uma resposta curta e direta que revela sua total rejeição às sugestões de Fitzgerald.
Curiosidades à parte, o final do romance é um dos mais obscuros que já li em toda a minha vida, e muito embora tenha sido algo já previsto, ainda assim, com muita simplicidade e pouco drama o autor nos deixa diante de uma verdadeira crise existencial entre o eu e o mundo que a guerra, o amor e a morte são capazes de nos provocar.
Nesta obra, ao falar em morte, os personagens automaticamente se veem falando da guerra, e é curioso que quem mais se opõe a ela e a odeia, são aqueles que primeiro irão morrer. É como se a guerra passasse a ser uma entidade que tem o poder de calar aqueles que a ela se opõe, para que estes não abram os olhos dos outros sobre o seu real propósito: a morte como uma fonte sagrada de perpetuação da guerra.
Para se manter uma guerra é necessário que vidas sejam perdidas, e esse tipo de compreensão nos coloca diante de um questionamento sobre a existência humana e seus propósitos. Algo que fui sentindo durante a história nas diversas faces que a morte tem aqui.
Em ?Adeus às Armas? a morte não está apenas no sentido denotativo da palavra, representada pelas mortes durante a guerra. Ela também está quando Catherine se anula e passa a representar um personagem para agradar a todos os desejos e vontades de Henry, mesmo quando isso sequer é uma exigência que ele faz.
A morte aqui também está no instante em que Henry passa a se vestir ?à paisana?, e todo um conflito interno acontece quando ele passa a não se reconhecer sem a farda, perdendo aqui não apenas a sua identidade como também o seu propósito.
Mas a morte mais marcante para mim está no fim, quando Henry se vê sozinho e sem rumo, sem saber quais os propósitos que agora sua existência precisa passar a almejar.
Entre amor e sofrimento, lealdade e deserção, o brilhantismo de Hemingway passeia na sua escrita basicamente de diálogos de linguagem simples, que nos coloca na mente de cada um desses personagens, nos dando uma ampla ideia do ordinário da vida, tanto quanto de sentimentos e perspectivas que faz com que cada personagem seja único.
Confesso que estar na mente do Henry foi prazeroso para mim. Porque a sua forma de ver a vida nas pequenas nuances dos prazeres da natureza (e como Hemingway tem o dom de nos transportar para cada um daqueles lugares), da comida e dos amores, me encantou por ser algo tão simples, tão corriqueiro e convencional. Não havia nada de grandioso ali. Apenas existia uma vida sendo contada de uma forma que nos provoca o sensorial.
A relação de Henry com Catherine foi o que mais me intrigou durante a leitura. Catherine é aquela famosa personagem que traz em si a imagem da mulher idealizada: sempre sensual e voltada aos prazeres masculinos. Mas por trás de toda essa falsa submissão, se escondia uma mulher enigmática, que não permitia a Henry ver as suas cicatrizes, e cicatrizes da alma.
Preciso dizer que é exatamente por não ter me oferecido nenhuma resposta sobre a Catherine e sua vida passada que a havia transformado tanto a ponto de agir com tanta negação a si mesma, que me fez me apaixonar ainda mais por esse grande clássico.
Gosto desse efeito que Hemingway deixou em mim, de me fazer ficar com a Catherine confusa, problemática e imperfeita. Tão imperfeita quanto o seu Henry, que primeiramente me parecia tão imaturo, mas que igualmente era um tenente tão corajoso e bravo, sem dramas ou alardes. Henry era um verdadeiro apaixonado, muito embora também fosse um homem tão equilibrado em situações de crise, que quase o fazia parecer um homem frio.
Essa narrativa mais pautada no diálogo me ganhou amplamente, e o final (que eu bem sabia que seria assim) me provocou essa sensação de ter sido abandonada ali, em meio a toda aquela tempestade emocional e existencial.
Muito embora eu veja tantas notas negativas a esse livro, e ele não tenha em suas linhas revelado algo que possa ser visto como grandioso no mundo da literatura, para mim, em suas entrelinhas, Hemingway me tocou completamente. E me fez ver tantas nuances da vida, dos amores, das nossas perspectivas sobre tudo (e quando digo tudo, é tudo mesmo!), que não há como não dizer que "Adeus às Armas" ganhou um lugar todo especial no meu coração.
Para finalizar, não poderia deixar de agradecer imensamente ao meu parceiro de LC, Fábio Nunes: muito obrigada pela (enorme!) paciência, e pelas trocas maravilhosas durante a leitura!!! E que venham outras LCs!