@fabio_entre.livros 10/11/2019
Pai de "O Quinze"
“O Quinze” é o primeiro e mais popular romance de Rachel de Queiroz; nele, a autora retrata o drama e a calamidade provocados no nordeste brasileiro – e, sobretudo, no Ceará – pela famosa seca de 1915. Quase trinta anos antes de Rachel, outro cearense lançou um romance notável sobre uma seca anterior que afligiu os nordestinos na segunda metade do século XIX. Assim, acredito que não é exagero afirmar que “Luzia-Homem” é um pai literário de “O Quinze”.
Comumente referida como “a Grande Seca” (assim mesmo, com iniciais maiúsculas), aquela estiagem durou três anos consecutivos – de 1877 a 1879 – e foi responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas que sucumbiram à sede, fome e doenças relacionadas à inanição. Para fugir de tal catástrofe, as famílias nordestinas foram forçadas a fazer um êxodo em massa e foi baseando-se no flagelo dos retirantes do Ceará (região mais atingida pela seca) que Domingos Olímpio escreveu “Luzia-Homem”.
Obra regionalista, “Luzia-Homem” se passa em Sobral, terra natal do autor, e narra a vida da personagem-título, uma jovem retirante que vive com a mãe velha e enferma num casebre miserável. Para sustento de ambas naqueles tempos de miséria extrema, Luzia faz trabalhos braçais em meio a outros retirantes, sendo fisicamente vigorosa e resistente como um homem – vindo daí seu apelido. Ao mesmo tempo em que é desdenhada pelas outras mulheres, devido à sua aparência masculinizada e comportamento casmurro, Luzia atrai a atenção de dois homens diametralmente opostos: Alexandre, outro retirante trabalhador e honesto, e Crapiúna, soldado traiçoeiro e briguento que a persegue e tem por ela uma obsessão inconsequente semelhante à de Leôncio por Isaura no romance de Bernardo Guimarães sobre as desventuras da escrava branca.
A propósito, a comparação vem bem a calhar: embora a obra de Domingos Olímpio pertença à escola naturalista, parece mais um romance de transição ainda marcado pelo Romantismo. A heroína Luzia carrega o contraste de ser externamente forte como um homem, mas totalmente feminina “por dentro”, pura e dominada por impulsos e sentimentos. Porém, isso não faz dela a típica donzela em apuros do Romantismo, como a citada Isaura; longe disso, o desfecho trágico da obra fala por si só.
Por outro lado, se a história de Luzia carrega traços românticos, a contextualização histórica e a observação do autor sobre aquele período são rigorosamente naturalistas, de uma crueza por vezes nauseante. A miséria, a fome e a morte são pintadas com as cores vivas do cientificismo e do determinismo, teorias caras ao Naturalismo, que reduz o ser humano à sua natureza carnal, animalesca.
“Luzia-Homem” é um dos melhores romances naturalistas que já li e se não dou nota máxima é porque achei que o último capítulo pecou em forçar coerência numa situação improvável. É um final chocante, mas um tanto gratuito porque, a meu ver, o causador daquela desgraça não tinha nada que estar naquele lugar e naquele momento. Contudo, talvez isso não seja exatamente um defeito do livro, mas uma impressão individual minha e que pode não afetar outros leitores. Para quem gosta de literatura nordestina com o mesmo tom de registro e crítica social de “O Quinze” e “Vidas secas”, esta obra é uma leitura indispensável.