Rebb.Rocha 24/02/2022
só leiam
“Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais: a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza.”
é essa epígrafe que dá início a um dos mais memoráveis romances da literatura global.
O famigerado Jean Valjean, tido, sem unanimidade, como protagonista, é condenado às desumanas galés pelo roubo de um pão num momento de extrema fome. Mas essa história vai muito além dessa simples sinopse.
Na França do tempo de Hugo coexistiam duas faces de uma mesma sociedade, uma que, posta em um pedestal, inspirava todo o ocidente com sua cultura vanguardista e sua filosofia progressista, e outra que “Dante julgaria ver ali os sete círculos do inferno em marcha”. Colocando essa segunda sociedade francesa como protagonista, Victor convida o leitor a passear nas histórias desses miseráveis personagens, abandonados pelo Estado e pela sociedade, que subsistem arrastados pelo relento de seus destinos.
O narrador, exuberantemente linguarudo, ao transbordar no que é narrado consegue entremear o enredo às grandes questões históricas do período - nos presenteia até mesmo com um guia turístico pelas cloacas da cidade parisiense - encadeando também à narrativa o discurso político e social do próprio autor. (é fato que as digressões não caem tão fácil no gosto de todos os leitores. Confesso que apenas a da Batalha de Waterloo não me encheu os olhos, mas vale a pena sim passar por todas elas. Em especial, as reflexões a respeito da revolução de 30 são excepcionais). A construção dos personagens e dos arcos do enredo são excelentes e, sobretudo profundas, mesmo que à primeira vista pareçam simplórias ou maniqueístas.
Seu tamanho grandioso se dá menos pelas suas gramas na balança que pela magnitude da obra. Com Os Miseráveis, Victor Hugo demonstra que o ideal de igualdade, tão aclamado na Revolução Francesa, prossegue utópico.
“Quando o homem chega às últimas extremidades, chega ao mesmo tempo aos últimos recursos. Desgraçados dos entes sem defesa que o cercam! O trabalho, o salário, o pão, o lume, o ânimo, a boa vontade, tudo lhe falta ao mesmo tempo. A luz moral apaga-se no interior; no meio destas sombras encontra o homem a fraqueza da mulher e a da criança, e amolda-as violentamente às ignomínias. Então todos os horrores se tornam possíveis. O desespero é rodeado por frágeis tabiques, que dão todos para o vício ou para o crime.” Livro VIII da terceira parte, capítulo V
"O pecado comete-se no meio da escuridão que envolve as almas. O culpado não é o que peca, mas sim quem produziu a sombra.” Livro I da primeira parte, capítulo IV