Fernando Lafaiete 17/11/2020Todos os Contos - Clarice Lispector | A Bela e a Fera, dois seres em um ser chamado Clarice.********************************NÃO contém spoiler********************************
Resenha postada originalmente postada em: https://www.mundodasresenhas.com.br/
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Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco / Literatura Nacional / 656 páginas
Se as palavras são uma arma, como muitos críticos afirmam ser, Clarice sabia as usar como ninguém. Poderia dizer que lê-la é uma tarefa fácil, mas não seria uma afirmação das mais correta a se fazer. Como decifrar o indecifrável? Ler Clarice Lispector é uma experiência única, não exatamente confortável e aprazível, mas única em quase todos os sentidos. É se abrir para novas descobertas; embarcar no íntimo da autora e de suas personas ficcionais, tentar entender seus questionamentos e afirmações, ao mesmo tempo que tentamos nos entender sem nos afogarmos no mais intímo do nosso ser. É bela, é poética, é epifânica, é desagradável, enigmática e esclarecedora. Uma autora cujos escritos impactam, confundem, entregam intensidade e nos fazem pensar: será que entendi o que li? Talvez não tenha entendido, ou talvez tenha, fico sem saber exatamente o que pensar. Seus textos são puros fluxos de consciência da autora, dos personagens, de um por vez, dos dois juntos. São curtos, mas parecem longos. São profundos, falam de amor, de felicidade, de relacionamentos, de crueldade, de superações e de incertezas. Ah... as incertezas! Ah... o amor e a felicidade!! O que significam e por que razão lhe concedemos tanta importância? O que esperar de histórias de uma autora que afirmava não escrever para agradar ninguém? O que esperar de uma escritora que se questionava e questionava tudo e todos? Como ela mesma dizia... "O que se vem depois da felicidade? O se tem depois que se é feliz?"
Reunindo os 85 contos escritos por Lispector (organizados por seu biógrafo Benjamin Moser), Todos os Contos, a elogiada e premiada coletânea - considerada uma das mais importantes da literatura mundial e uma das melhores de 2015, segundo New York Times - apresenta em ordem cronológica os curtos desabafos da autora desde sua juventude até sua fase mais madura. O que nos possibilita acompanharmos passo a passo de sua evolução como escritora, se é que isso é possível. Clarice Lispector se progredia e se regredia todos os dias e a todo momento, o que faz a tarefa de lê-la de fato um exercício de tentar decifrar o indecifrável. Iniciamos com PRIMEIRAS HISTÓRIAS (1940), vamos para LAÇOS DE FAMÍLIA (1960), seguindo para A LEGIÃO ESTRANGEIRA (1964), parando para respirar em FELICIDADE CLANDESTINA (1971), indo para ONDE ESTIVESTE DE NOITE (1974); A VIA CRUCIS DO CORPO (1974) vem logo em seguida... VISÃO DO EXPLENDOR: IMPRESSÕES LEVES nos encaminha para o final que termina com ÚLTIMAS HISTÓRIAS (1979). Oito "coletâneas" excepcionais, singulares, difíceis de serem compreendidas por inteiras, mas magníficas separadas e juntas.
Não se atreva a achar que irá entender tudo que irá ler. O objetivo aqui não é entender palavra por palavra, mas sim em seguir até o final sem medo do que irá encontrar pela frente. É perder o fôlego e recuperá-lo sem se deixar abater. É se desafiar, é se divertir, é rir e chorar. É entrar nesse turbilhão chamado Clarice Lispector, não permitindo ser vencido. Tente dar sentido ao que ler, e entenda que o ser-humano é complexo o suficiente para não ser entendido por inteiro; e isso é fascinante. Clarice fazia antiliteratura como ela mesma fazia questão de dizer. Escrevia para se libertar, para incomodar e para nos fazer refletir sobre a vida. Mesmo não gostando, era comparada com Virginia Woof. Uma se entregou à vida, a outra deixou de vivê-la... mas ambas entendiam que somos o mais complexos dos complexos que existem por aí, e isso as torna ainda mais incríveis do que já são.
Seja descrevendo de forma verborrágica a cidade de Brasília (conto Brasília), nos levando na epifania de uma mulher que passa a entender o mundo ao seu redor (conto Amor) ou narrando cenas de traições e assassinatos, a verdade é que Lispector era uma escritora completa, capaz de escrever o que quisesse e como quisesse. Se não a entendemos, já não é extamente problema dela. Releituras se fazem necessárias e análises aprodundadas são por vezes essenciais. Todos os Contos de Clarice Lispector é uma obra fundamental para ser lida, estudada e destrinchada. Se debruçar em textos tão intensos é uma tarefa que poucos se permitem, mas que todos deveriam ao menos tentar. Hoje eu sei que se um dia me perguntarem: Quem é Lispector? Eu responderei: A Bela e a Fera em uma única mulher.