Brenoarf 05/02/2022
A visceralidade dos incógnitos
"É isto um homem?" configura uma profunda reflexão sobre a fragilidade da existência humana em confronto com a sua mais intensa capacidade de sobreviver, mesmo onde há apenas loucura, sofrimento e dor.
A privação da maioria dos recursos de manutenção de vida biológica a um grupo selecionado, imposta por outros seres humanos no auge do egoísmo e soberba, alia-se à suprema miséria e humilhação moral que desconecta a vida e deteriora o intelecto e a alma.
O nascimento do mal, em parâmetros novos, induz a um gradual apagamento dos seres escolhidos como alvos da horrenda destruição executada pelo nazismo de Hitler, que registra o extermínio como fato casual e compreensível para sedimentar uma nova era. Levi, como escritor, ocupa-se, nessa obra, dos judeus do complexo de Auschwitz com quem conviveu e dá voz aos ausentes, aos que foram silenciados pela inexistência física no pós-guerra e que foram em realidade as verdadeiras testemunhas.
Os testemunhos, a negação, o silêncio voluntário e o silêncio pela ausência são um mosaico de sentidos humanos gerados a partir do que a estudiosa Hannah Arendt denominou como "banalidade do mal". Para além de relatar o cotidiano em Auschwitz, em analisar o declínio da humanidade perante seus próprios olhos, Levi deixa, nessa obra, como legado a necessidade de preservar a memória, sendo o testemunho do autor, portanto, a preservação do coletivo. O coletivo que sofreu, morreu e constantemente é alvo de uma tentativa de covardes apagamentos. Isso porque a pergunta que dá título ao livro é um questionamento sem conclusão simples: o homem é o mesmo que matou milhares de judeus, mas também é o mesmo que sofreu com a perda da identidade nos campos de concentração nazistas. O homem é uma incógnita.
A obra de Primo Levi é certamente um dos marcos mais importantes para a narrativa testemunhal a cargo da ficção, de onde saem as palavras em tantos quantos foram os idiomas envolvidos, de onde brotam as imagens cênicas de tantas quanto foram as atrocidades cometidas e de onde emergem as personagens-testemunhas que ultrapassaram "a libertação, num cenário miserável de moribundos, de mortos, de vento infecto e de neve suja [...]" como descreveu Primo Levi.