bia prado 25/07/2019a pior parte é saber que não é ficção Em É isto um homem?, de Primo Levi, nos voltamos em direção as atrocidades ocorridas no campo de concentração de Auschwitz, na Segunda Guerra Mundial, através de um relato real e muito consciente de todo o sistema ao qual foi submetido. O trabalho forçado, as relações de poder, as configurações dos espaços e os indivíduos que integravam o campo são alguns dos elementos tratados no testemunho, emergindo o leitor nesse ambiente claustrofóbico e opressor. Ele também indaga sobre a fome, o frio e como o modo de vida que levava não poderia ser digno de ser considerado humano.
O primeiro fator que tiraram foi seu nome. Deram-lhe um número como substituto, 174.517, e o tatuaram em seu braço, para que ficasse consigo até a morte e o lembrasse de que foi reduzido àquilo. Não foi privado apenas de estar com sua família e de seu lar. Suas vestes, o cabelo, direto de ir e vir, de falar, de comer, nada daquilo o pertencia mais. Deveria seguir as ordens, pois se não seria batido e humilhado, e a punição para os que se rebelavam era a forca. Muitas vezes “quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo.” (p. 33) e eles precisavam achar formas de se agarrar em algo que fosse minimamente humano. A única opção que possuíam, segundo Levi, era a “de recusar nosso consentimento.” (p. 55), portanto seguir as ordens não para obedecer aos alemães, mas se lavar, andar ereto para manter a dignidade e continuar vivo, para não morrer aos poucos.
Por serem tratados como animais, inferiores e indignos, ficavam num estado letárgico diante da morte iminente. A questão para eles não era se iriam morrer lá, mas quando chegaria sua hora. Não havia mais um futuro além daquele lugar, somente o presente dominava suas mentes, pois o amanhã nunca estava garantido. Pensam constantemente se voltariam a ver a luz do sol e se em algum momento sairiam daquele período de escuridão e trevas, que parece que só ter fim com a morte. Os dias iguais, com uma rotina repetitiva e estressante, fazia com que os aniquilasse “primeiro, como seres humanos, para depois matar-nos lentamente.” (p. 70).
Dormir pouco, trabalhar durante horas excessivas, superar a exaustão, ter que conviver com a constante fome, são alguns fatores que mudam um homem. Por isso, a lógica no campo era diferente, como diz o autor “não há criminosos, porque não existe uma lei moral a ser violada; não loucos, porque somos programados; cada ação nossa é, neste tempo e neste lugar, claramente a única possível.” (pp. 143-144). Ali, cada um estava por si só e era “impossível sobreviver sem renunciar a nada de seu próprio mundo moral (p. 136). Não podiam fazer perguntas, pois seriam maltratados ou ignorados e Levi faz afirmações categóricas e muito tristes sobre o pensamento: "Porque nos Campos perdem-se o hábito da esperança e até a confiança no próprio raciocínio. No Campo, pensar não serve para nada, porque os fatos acontecem, em geral, de maneira incompreensível; pensar é, também, um mal porque conserva viva uma sensibilidade que é fonte de dor, enquanto uma clemente lei natural embota essa sensibilidade quando o sofrimento passa de certo limite. (pp. 251-252)"
Mesmo que não fosse fácil, é impressionante ver que eles conseguiam enxergar pequenas ausências de tristeza. Por exemplo, quando estava chovendo, mas não ventava. Esse detalhe, que pode parecer pequeno em um primeiro momento, faz completa diferença na vida desses escravos quando trabalhavam ao ar livro e faziam questão de se agarrar a esses pontos, pois ajudavam a suportar mais uma jornada de trabalho forçado. No caso de Levi, o poema épico A divina comédia, de Dante Alighieri, foi tanto um refúgio de sua condição no campo, como fazia comparações entre a ficção e sua realidade, pois ele estava no inferno na terra. Era uma forma de fugir daquele ambiente, pelo menos em pensamento.
As experiências vividas por Levi no período em que ficou no campo, de dezembro de 1945 a janeiro de 1947, não impediu que o autor contasse sua história. Ao contrário são elas que motivam sua escrita e impulsionam o testemunho. Ele se apoia integralmente na memória para contar sua história e, mesmo com falhas e buracos desta, o autor consegue transmitir como era o cotidiano. Arrisco dizer que o trauma fez com que recordasse com precisão dos detalhes para poder recontá-los. Era algo que o incomoda tanto, que como ele poderia esquecer? Ainda que a linguagem não dê conta de descrever tudo pelo qual passou, ele consegue passar esse mal-estar para o leitor, fazendo com que seja um livro indigesto.
O autor questiona, como poderia utilizar a mesma palavra em um ambiente livre e no campo. A experiência de sentir fome por não comer o almoço não se compara a fome de Auschwitz. Por isso que a incapacidade de narrar com precisão os acontecimentos a que eram submetidos, de degradação do corpo e da mente, é um obstáculo muito grande a ser ultrapassado. Conseguir contar e conseguir um público para receber o testemunho, dando-lhe o devido valor, são dois méritos de Levi. Seu livro tem uma importância imensurável, tanto para a literatura, quanto para a história.
É isto um homem? permanece conosco mesmo após o fim, pois foi algo real, milhares de pessoas passaram por situações semelhantes e iguais as descritas e não é fácil aceitar essa verdade. O que o homem fez a outro homem em Auschwitz choca. O capítulo “Outubro de 1944”, em que narra a seleção para a câmara de gás, me deixou enojada, pois evidencia ainda mais a crueldade e falta de humanização do holocausto. Não importava muito quem estava indo para o gás, pois os nazistas acreditavam que nenhum judeu tinha o direito à vida e o tratavam como coisa, pior que um animal. Não havia limites no campo e é impressionante ver alguém tão lucido como Primo Levi, mesmo depois de tudo o que enfrentou.