nsantos06 31/08/2023
Memórias de soldados sem bandeira
Assertiva e direta, destruidora e ao mesmo tempo poética, assim é construído Becos da memória, de Conceição Evaristo. Trazendo como história, as memórias das pessoas mais velhas da favela e toda sua vivência passada, permitindo correlacionar o passado colonial brasileiro com o presente, cercado de seus impactos na população negra.
Ao recontar as memórias dos moradores mais velhos, podemos vislumbrar a favela como uma extensão atual de condições insalubres já vividas por pessoas negras no passado escravocrata. Denominado por Conceição como: “senzala-favela”, relacionamos o passado com o presente. O poder da memória e da narrativa nos possibilita revisitar vidas e passados que foram silenciados. Sendo assim, criando-se uma visão da história que necessariamente não é dita pelos colonizadores.
Além disso, cada personagem em Becos é único e complexo, auxiliando o leitor desamparado que ressignifique em seu imaginário aquilo que ele compreende como “favelado”. Ademais, a sua descrição dos personagens foge de uma visão estereotipada do que é o negro e o favelado, contribuindo para essa ressignificação e consequentemente a humanização.
É através das memórias e das letras que a personagem, Maria-Nova, identifica uma maneira de contar essas histórias, não sendo ditas unicamente pela oralidade. Nas linhas que lemos, percebemos o quão adoecedor e tocante pode ser a falta. Seja uma falta material ou mental. A fome, a desesperança, a miséria, todas essas necessidades que hão de ser supridas, são rejeitadas. Essa rejeição advém de raízes coloniais, sendo criado ao longo da história brasileira projetos políticos de combate à população negra. A Lei da vadiagem (1890), por exemplo, entendia necessário o combate aqueles que estavam ociosos, sem algum trabalho a fazer. No entanto, coincidentemente ou não, esta lei foi instaurada no período após a assinatura da Lei Áurea. Tendo como impacto em muitas pessoas negras alforriadas sem ocupação alguma.
Infelizmente, como nos conta a própria autora antes do começo do livro:
"Entre o acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, e ali que explode a invenção. Nada que está narrado em Becos da Memória é verdade, nada que está narrado em Becos da memória é mentira. Ali busquei escrever a ficção como se estivesse escrevendo a realidade vivida, a verdade. Na base, no fundamento da narrativa de Becos está uma vivência, que foi minha e dos meus. (p.12)"
Essa lacuna entre o acontecimento e a narração do fato permite que as histórias aqui contadas sejam, ao mesmo tempo, reais e ficcionais. Conseguimos identificar na realidade brasileira, em múltiplas faces, o que a autora narra em seu livro.
Uma condição que naturaliza a escassez como ponto central da vida. Tal condição trouxe aos personagens um desespero em que fundamentaram sua vida. Viam na morte uma possibilidade de existir sem miséria, somente nas memórias dos que sobraram. O fim de uma existência trágica onde a morte curaria todas as faltas.
Ademais, Becos da memória permite, através da literatura, fazer-se política. A construção da representação dos moradores da favela por meio de suas próprias memórias são demonstrações de atos políticos. Assim como Maria-Nova, Conceição faz das letras um meio contar o que querem esconder.