Lucas 27/01/2020
A loucura e a incompreensão são separadas por limites bem tênues
O patriotismo, ou melhor, a falta dele, sempre foi considerado um dos grandes problemas do Brasil como nação. Seja pelo quase completo desconhecimento dos símbolos nacionais ou pela secular memória curta do brasileiro, é sabido que a falta de uma identificação concreta e pessoal com o país é algo que, de certa forma, emperra a ascendência do Brasil, em especial o seu povo, no cenário mundial.
Esta pequena introdução serve para preambular uma análise sobre Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), um dos grandes livros da literatura nacional escrito por Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Com uma vida bastante atribulada, Lima Barreto foi um dos mais importantes símbolos do movimento pré-modernista, que imperou no Brasil entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
Este movimento não teve uma delimitação artística definida, sendo, em realidade, o primeiro passo rumo ao modernismo, este sim um movimento propriamente dito, que revolucionou não apenas a literatura, como as artes plásticas e a música, representado pela famosa Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo em 1922. Mas segundo Faraco e Moura (Ática, 1983), o pré-modernismo era marcado por dois vieses em tese conflitantes: o do conservadorismo, com traços do naturalismo, uma exacerbação do realismo; e a renovação, marcada por uma preocupação das artes com a sociedade brasileira, repleta de tensões e grandes mudanças (a República havia sido recém-proclamada).
Percebe-se em Triste Fim de Policarpo Quaresma todas estas características, seja a mais geral, de relação com o patriotismo, como também em termos literários, de identificação com o movimento pré-modernista. A obra-prima de Lima Barreto trata da história do personagem que nomeia o livro, um major do exército e apaixonado pelo Brasil. É talvez a forma mais eficiente de resumir Policarpo, um protagonista contado por um narrador onisciente, mas que cuja construção não revela nada de engrandecedor ou heroico. Todavia, o talento de Lima Barreto não é capaz de tornar o major Quaresma um tipo inócuo, sem sentido; o leitor se identifica com ele não pelos seus sentimentos ou atos, mas por uma permanente sensação de incompreensão frente a um mundo problemático.
Este "mundo problemático" nada mais é que a sociedade carioca da primeira década do século XX, muito bem pintada pela escrita do autor. A narrativa revela e realça as ironias inerentes a uma sociedade com ligações internas obscuras e apegadas a elementos controversos, como a troca de favores e a conveniência, tanto no meio urbano quanto rural. A crítica, ora fina, ora exposta, atinge não apenas a "alta roda" dessa sociedade (onde reinavam tolos preconceitos, relacionados à formação acadêmica e casamentos, por exemplo), como também toda uma estrutura maior que estava por trás disso: a então jovem república.
Quando da época da publicação do romance (primeiramente em folhetim no Jornal do Commercio e depois em volume único em 1915, numa tiragem bancada exclusivamente pelo escritor), a sociedade brasileira vivia um período mais de conformismo do que de esperança transformadora em relação ao fim da monarquia em 1889. A República, que inicialmente trouxe uma sensação de alcance de uma identidade nacional, baseada na democracia, teve com o passar dos anos apaziguadas estas questões libertárias e heroicas que com ela vieram. Lima Barreto contribui para essa sensação, porque a narrativa de Policarpo Quaresma em vários momentos mostra que pouca coisa mudou com o exílio de Dom Pedro II: as estruturas sociais que comandavam o Brasil continuaram restritas a uns poucos favorecidos e, se havia uma democracia, ela não se estendia no acesso a oportunidades ou mecanismos de ascendência social. Assim, a escrita do autor alimenta uma sensação de niilismo, de desânimo, que é personificada em Policarpo Quaresma.
Então com cerca de quarenta anos, o protagonista leva uma vida previsível, exata e metódica, sem grandes sonhos ou ambições que não envolvam um profundo e detalhado conhecimento do Brasil e seus antepassados (os "originais", segundo ele, os indígenas). Este apego, por vezes exagerado e que gera várias situações cômicas, de uma forma geral, se torna tocante ao leitor, e, em consonância com o pessimismo do título, fazem a com que a narrativa seja carregada de um tom niilista e "dostoiévskiano". Uma das características dessa oralidade é o narrador, que, impessoalmente, conta a história numa toada permanentemente séria, mesmo ao retratar situações cômicas advindas de Policarpo e este balanceamento entre forma de narrar e o que está sendo narrado é um dos melhores símbolos de todo o livro.
Claramente, a narrativa ilustra primeiramente uma atitude proativa de Policarpo e seu posterior desânimo em três esferas: a cultural, a agrícola e a política. É esta última quem mais contribui para o seu desfecho, previsível desde o título, especialmente pela inserção da ficção na Segunda Revolta da Armada, ocorrida no Rio de Janeiro entre 1892 e 1894, que visava a derrubada do Presidente Marechal Floriano Peixoto (1839-1895). Floriano havia assumido o poder com a queda do Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892) e deveria conduzir a convocação de novas eleições neste caso. Todavia, Floriano acabou estabelecendo uma ditadura, que com a vitória na revolta mencionada que foi comandada por membros da Marinha, prendeu e executou centenas de opositores.
A figura controversa de Floriano é decisiva a Policarpo. Seus questionamentos são bastante incisivos a respeito da validade das suas ações ao longo da narrativa. De uma forma específica, o árduo amor pela pátria e a necessidade de construir um legado universal que represente isso são o cerne destes exames de consciência que o protagonista faz nas últimas páginas. E conduzem também a diversas outras conclusões de ordem prática e atual como os destinos que o ser humano dá a sua vida e do que ele considera realmente importante enquanto está vivendo.
É preciso que seja louvada a edição da Editora Ática, muito popular no final dos anos 90 e ainda hoje importante editora do ramo de material didático. A edição resenhada pertence à Série Bom Livro, que publicou grandes clássicos da literatura nacional em edições esteticamente simples, mas com um conteúdo complementar bem relevante. No caso dessa edição, de 1997, as primeiras páginas são permeadas com um rico texto introdutório elaborado pela Drª Carmen Lydia de Souza Dias, professora de literatura da USP, que comenta muitos pontos importantes da narrativa (este texto precisa ser lido após a leitura da obra, portanto). Já na história em si, há dezenas de notas de rodapé muito elucidativas, seja explicando algo ou, incrível, chamando a atenção para algum detalhe narrativo. Ao fim, numa parte separada, há ainda um resumo da peculiar vida de Lima Barreto, com várias imagens ilustrativas. Trata-se de uma edição rica e que traz um ar de nostalgia: muitos adultos de hoje tiveram o primeiro contato com vários clássicos nacionais pertencentes a esta coleção.
Ao buscar e se apegar a todas as particularidades que fazem do Brasil esse país tão vasto em todos os aspectos, Policarpo Quaresma torna-se um dos maiores personagens da história da literatura nacional, que ele tanto defende e valoriza. Louco ou incompreendido, o major Quaresma é capaz de cativar qualquer leitor e isso se deve muito ao talento de Lima Barreto, que abusa do realismo na construção de uma obra-prima não apenas dele, mas de toda a literatura brasileira. Ela mistura comicidade e niilismo de uma forma quase inigualável e transforma seu protagonista no maior personagem "quixotesco" já desenvolvido na literatura nacional.
Seja tomado de forma literal ou não, a verdade é que Triste Fim de Policarpo Quaresma é um livro excelente, rico em termos de abrangência, sagaz nas críticas sociais e com uma ficção agitada e que prende a atenção (outros personagens marcantes também destoam, além do protagonista, como o futuro leitor perceberá). A principal obra de Lima Barreto simboliza, de certo modo, tudo que a literatura brasileira tem de melhor e, seja patriota ou não, é um dever que todo leitor o leia para se deleitar com as suas linhas.