CarlosLopeSh 22/08/2018O Patriotismo na pele de um bobalhãoO nome do protagonista, Policarpo Quaresma, sempre é citado quando alguém quer ironizar o nacionalismo ou o patriotismo. Agora sim, ao concluir a leitura, ficou explicado pra mim o motivo dessa referência: o livro que traz esse personagem é, na verdade, antipatriótico e antinacionalista, destilando o ranço do Lima Barreto sobre esses temas.
Gosto sempre de conhecer a biografia básica do autor de uma obra antes de degustá-la, pois existem marcas de realidades pessoais gravadas pela pena e pelas experiências de vida de quem escreve. Identifiquei claramente tal noção no "Triste Fim" do Lima Barreto, o qual teve uma vida cheia de problemas, haja vista ter sido alcoólatra, louco de hospício e marxista (ele divulgou, inclusive, artigos elogiando e defendendo a Revolução Russa de 1917).
O livro é escrito em terceira pessoa e conta a trajetória do ?major? Quaresma até o seu triste fim, por ter sido um Nacionalista, Patriota e Conservador, passeando com o leitor pela sociedade brasileira do início do século XX, nos primeiros anos, conturbados, da recém-nascida República.
Sobre o nosso Quaresma, assim ele é apresentado:
"Vivia num isolamento monacal, embora fosse cortês com os vizinhos que o julgavam esquisito e misantropo. Se não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos.
?era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma coisa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da coisa que fixava.
Estudou a pátria, nas suas riquezas naturais, história, geografia, literatura e política? Por fim, possuía hábitos burocráticos e sempre buscava elementos nacionalistas!"
Por estudar a língua Tupi-Guarani, fora apelidado de Ubirajara por seus colegas de repartição. Enfim, o autor escalou um bobalhão, cheio de "nonsenses", para vestir a roupa de patriota e nacionalista. Realmente, a arte é eficiente para ser utilizada na propagação de idéias! Obviamente, discordo do Oscar Wilde e seu Esteticismo que achava que toda arte é inútil...
O enredo tem como ambiente o Rio de Janeiro em meio à Revolta Armada, um conflito civil envolvendo o ditador Marechal Floriano Peixoto. Confesso que eu não lembrava lá muita coisa sobre esse período e sobre esse nosso mandatário republicano. Aliás, ele também é apresentado de um forma bem ruinzinha...
"Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça. (?) uma preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos."
Essa leitura me fez até antecipar um dos livros de História do Brasil que estavam na minha fila de leitura, pois fiquei estimulado a conhecer mais o Marechal Floriano para confirmar a figura patética e cruel, como foi apresentada pelo Lima Barreto.
Resumindo a trama, o Quaresma passa por três dramas em que tenta dar cabo aos seus planos nacionalistas, mas tornam-se verdadeiros fiascos...
Além das suas aulas de violão com o Ricardo Coração dos Outros, rei das modinhas (genuinamente brasileiras, é claro!), utiliza o seu tempo livre com o estudo dos costumes tupinambás, organizando códigos de relações, cumprimentos e cerimônias domésticas. Chega ao ponto de receber o seu compadre Vicente Coleoni e sua afilhada Olga com choro e berro, arrancando os cabelos, à moda dos guaitacás. A sua derrocada iniciou-se juntando esses gestos tresloucados de imitação dos nossos primeiros habitantes indígenas com um Requerimento que ele protocolou na Câmara, para que o Congresso Nacional decretasse o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro. Eita? o resultado foi que a galera fez a festa com zombarias, ao ponto de tornar o nosso Policarpo um "Zé Mané" bem conhecido e bem zoado, obviamente. Claro que o Lima Barreto, ao ridicularizar o seu pseudo-major, teve como alvo as idéias nacionalistas e patrióticas.
Quaresma, após ser punido na repartição e tornar-se ainda mais acabrunhado com as pessoas e mais incisivo em suas idéias, foi parar em um hospício! Aqui, o autor enxertou as experiências vividas por ele mesmo e por seu pai, quando foram internos nesse ambiente de insanidade. Ele dá uma palhinha e escreve sobre o hospício e sobre o tema da loucura:
"O hospício! É assim como uma sepultura em vida, um semienterramento, enterramento do espírito, da razão condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem. A saúde não depende dela e há muitos que parecem até adquirir mais força de vida, prolongar a existência, quando ela se evola não se sabe por que orifício do corpo e para onde."
"Quem uma vez esteve diante desse enigma indecifrável da nossa própria natureza fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após. E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quase nunca acaba."
Percebe-se o quanto é boa a escrita do Lima Barreto, na sua forma, nas construções textuais! Ele transmite as suas ideias com palavras bem escolhidas e expressões bem elaboradas. Gostei bastante desse aspecto!
Continuando a trama, conhecemos outros personagens do meio militar. Estes, vivem arrotando bravura apenas no discurso: o tenente Fortes, o almirante Caldas, o general Albernaz, o tenente-coronel Inocêncio Bustamante. A leitura fica, muitas vezes, arrastada por entrar em minúcias desnecessárias desses personagens que não acrescentam lá muita coisa à trama.
Ah... o leitor também gasta um tempo na descrição de vários lugares do Rio de Janeiro que não existem mais ou que foram renomeados após a proclamação da República.
Bem, após a sua saída do hospício, Quaresma encasqueta na ideia de viver da agricultura. Compra o Sítio do Sossego e lá se estabelece com a sua irmã, D. Adelaide, para provar a superioridade da fecundidade das nossas terras. A sua lida com o plantio, entretanto, é muito científica e pouco pragmática. Junto com um empregado, Anastácio, ele sua a camisa e caleja as mãos todos os dias, tentando mostrar para todos os vizinhos, pobres e indolentes, que o esforço em trabalhar a terra é compensatório. Não consegue! Além das dificuldades técnicas (e das formigas famintas! hehe) esbarra com a política e com as leis que impedem o homem do campo de prosperar.
Um tema também muito explorado e tratado, de forma pejorativa, pelo autor é sobre casamento não obstante a sua constatação do pouco uso do Sacramento do Matrimônio pela gente pobre e, em toda parte, a adesão à simples mancebia.
Como exemplo da idéia do autor sobre esse tema, encontramos a coitada da Ismênia que, após 5 anos de esperanças frustradas, fora abandonada pelo noivo e acabara por enlouquecer, morrendo tragicamente depois do seu pai apelar, sem sucesso, até para a macumba em busca da sua sanidade:
"Casar, para ela, não era negócio de paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos: era uma ideia, uma pura ideia. Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da ideia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer: Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar... ou senão: Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se casar... e a menina foi se convencendo de que toda a existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa cousa: casar.
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das ideias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias para aquele cerebrozinho; e de tal forma casar-se se lhe representou coisa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar solteira, tia, parecia-lhe um crime, uma vergonha."
Outro fiasco é o casamento de Olga com Armando Borges, homem de caráter superficial e ambicioso que acaba por decepcioná-la, após algum tempo de casados, com as suas mentiras em busca de sucesso profissional e social.
Lima Barreto pinta, assim, o casamento apenas como uma união por conveniência, por obrigação, e gerador de decepção e infelicidade. Como leitor, a partir da realidade do hoje, no final, questionei: Por que não apresentar o outro lado da moeda, onde um casamento pode frutificar em um lar feliz? Será que não existia nenhum casamento fundamentado no amor e na união livre entre casais? Bem, considerando que Barreto cresceu sem a mãe, teve o pai internado em um hospício e nunca casou ou teve filhos, acho que dá pra entender a sua visão (ou revolta?) sobre o tema? Além disso, o autor está inserido no Realismo, um ?diacho? de movimento pessimista que sempre ferra com os personagens, no final!
Finalmente o terceiro ato da trágica saga patriótica de Quaresma: a visita ao Marechal Floriano para lhe entregar as suas idéias sobre as políticas agrárias (que são negadas!). Ele acaba sendo convocado para defender a Pátria, como comandante de um destacamento em meio ao conflito armado que se desenrolava. Até a luta armada é até tratada com uma certa zombaria: a cidade passa a ver os bombardeios como um jogo, com torcedores, uma diversão para a cidade!
O final da obra passa a ser dramático, com um Quaresma relatando os horrores da guerra e a sua necessidade de pedir perdão a alguém por ter matado pessoas. Ele revela o seu medo e a sua falta de sentido de vida, desejando, quando puder, viver na quietude. Reconhece o seu sacrifício na guerra, o seu patriotismo, como algo inútil;
O conflito acaba e Quaresma assume o posto de carcereiro, violentado pela piedade e pela sua consciência diante dos pobres presos de guerra. Ao denunciar com ímpeto a seleção de alguns presos para serem exterminados por enviados do Itamaraty, passa a ser considerado inimigo do Governo. É preso e condenado à morte por traição!
Aqui, o autor usa o choro, a crise existencial e as reflexões do pobre e iludido protagonista para negar o amor à pátria e até a existência de Deus: "gastara o tempo em vão com a miragem de estudar a pátria, por amá-la muito. Gastara a sua mocidade com ela, que o recompensaria agora, na velhice, com a morte. O que deixara de viver? A brincadeira, a diversão e o amor não foram experimentados! O tupi, a agricultura e o combate pela Pátria, o levaram à loucura e à decepção. A Pátria que quisera era um mito, criado por ele em seu gabinete, em seu fechamento em si mesmo. Duvida da existência de Deus e sugere ser uma perda de tempo servi-lo. Iria morrer sem deixar traços, sem filhos, sem amor, sem ter vivido nada saboroso. De que adianta o sacrifício por um ideal?"
Sem ele saber, o seu amigo Ricardo Coração dos Outros busca ajuda para tentar salvá-lo da morte iminente. Ninguém se interessa, a não ser Olga! Esta, entretanto, não consegue o seu intento na primeira tentativa. Finalmente, o leitor conclui a sua leitura boiando, sem ter a certeza do triste fim de Policarpo Quaresma.
A minha classificação? Dei 3 estrelas, achei uma boa obra, sobretudo pela ótima escrita do autor. A trama é razoável e me levou a experimentar emoções que transitaram da comédia ao drama. Entretanto, causou-me uma certa antipatia e incômodo ao me ver sendo conduzido a um ambiente de menosprezo por alguns valores que defendo...