Jô 17/04/2024
A história começa em um viveiro de coelhos selvagens, onde Avelã escuta os relatos de seu amigo Quinto, que tem estranhos sonhos proféticos. Quinto conta sua premonição de que os humanos destruirão toda a região daquele viveiro, e de que eles serão todos mortos no processo. Alarmado, Avelã então decide migrar para se estabelecer em algum outro lugar, mas, tendo apenas os ?sonhos? de Quinto como argumento, ele só consegue convencer nove outros coelhos a partir.
Tem início então uma longa viagem em busca de um lugar para construir o novo viveiro. A terra prometida, Watership Down, é um lugar farto de alimentos e seguro contra inimigos, onde uma nova comunidade de coelhos poderá surgir e se expandir. Mas o caminho até lá é cheio de ameaças e armadilhas, e os coelhos contam com a liderança e inteligência de Avelã para manter o grupo vivo e protegido.
Os personagens são planos ? Avelã é o líder, Quinto é o profeta e Topete é o guerreiro, por exemplo ?, mas apaixonantes. Em uma aventura após a outra, cada um dos coelhos vai mostrando o seu valor, e o envolvimento do leitor com o grupo só cresce. Uma leitura que começa com ?olha que bonitinhos os coelhinhos? vai surpreendendo e ultrapassando expectativas, até que o leitor se surpreende vibrando e torcendo diante de uma batalha épica de coelhos bons contra coelhos maus, em meio a uma tempestade de trovões. Isso sem contar que você se envolve tanto com os coelhinhos, que começa a procurar lógica nas ações deles, e se revoltar com erros como ir fundar um novo viveiro e esquecer de levar fêmeas! É muita tensão para o pobre leitor, mas sobrevivemos.
Em busca de Watership Down é uma aventura escrita para crianças de outros tempos, portanto tem um texto bastante denso, com vocabulário complexo para as crianças de hoje em dia e uma narrativa bastante descritiva. Mais ou menos como As crônicas de Nárnia. Mas, diferente da obra de C. S. Lewis, os animais no livro de Adams não têm habilidades humanas ? não constroem objetos nem falam a língua das pessoas. E a participação humana na história é bem pequena. Nesse aspecto, seu livro lembra bastante o desenho Os animais do Bosque dos Vinténs (também baseado em um livro infantil).
Adams, que pesquisou bastante sobre a anatomia e os hábitos dos coelhos, fez questão de que seus personagens não fizessem nada que fosse cientificamente impossível para esses roedores. Aliás, apesar de conversarem entre si e terem certo nível de antropomorfização (o mínimo necessário para contar a história), os coelhos da história são animais bastante reais, e há inclusive partes da trama determinadas por seus instintos e animalidade. Um exemplo é o fato de eles preverem que, quando uma fêmea entrar no cio, eles brigarão por ela, e saberem que não podem usar de racionalidade e autocontrole quando chegar esse momento.
Apesar de suas limitações e o realismo com que são descritos, esses coelhos possuem religião, uma interessante mitologia ? com lendas que eles contam uns aos outros, intercaladas à narrativa principal, e que são algumas das partes mais poéticas e divertidas do livro ? e até um idioma próprio, explicado num glossário no fim do livro. O autor criou termos específicos para palavras que seriam necessárias aos coelhos, mas não aos humanos, como ?silflay?, que significa ?subir à superfície para comer?.
Watership Down foi adaptada para uma série de animação em 1978, e ganhará uma nova versão em uma minissérie produzida pela Netflix. Para quem quiser se preparar antes de assistir ao desenho, a editora Planeta reeditou o livro em uma elegante edição de capa dura para agradar os olhos. A minha única crítica é que algumas das epígrafes (há uma em cada capítulo) não foram traduzidas, deixando frases em francês ou inglês que o leitor pode não conseguir entender.
Esta longa história infantil é uma leitura demorada, mas gostosa e recompensadora, que tem mais apelo para adultos amantes de fantasia. A sensação ao fim da leitura é de conhecer um grande clássico e de ter acompanhado uma aventura grandiosa.