Alessandro460 03/08/2024
Tóxico e envolvente
Livro de estréia de Donna Tartt, “A história secreta” causou barulho quando foi publicado e torna-se em pouco tempo, um best-seller. É do tipo que divide opiniões. Muitos leitores o “amam” e o tornaram objeto de culto, outros acham que o livro é pretencioso e artificial.
Também é uma obra que inaugura um novo subgênero chamado “Dark Academy”, que tem suas origens no romance gótico e na narrativa suspense/ mistério, com algumas características muito específicas: uma trama que se passa em um ambiente acadêmico, no qual um misterioso crime acontece e que envolve todos aqueles que habitam esse cenário (professores e alunos), descrito com contornos sinistros.
Logo na primeira página, a autor “quebra” as regras desse tipo de história suspense/mistério, pois há revelação de quem morreu e quais são culpados pelo crime. Sendo assim, o aspecto mais interessante de “A história secreta” não é concretização de um crime e sim todo processo que o antecede. É importante ressaltar que os eventos relacionados com esse crime são narrados pelo ponto de vista de um narrador testemunha não confiável chamado Richard Panne.
É sempre da perspectiva distorcida de Richard, uma espécie de versão moderna de Raskolnikov – sendo o clássico “Crime e Castigo” uma das principais referências da autora que a trama vai se desenvolver aos poucos.
Na trama, Richard um tanto misantropo e egocêntrico como Tom Ripley de "O Talentoso Ripley" matricula-se em uma universidade de elite (Commons) para estudar literatura. Ele se interessa por grego antigo, uma área que ministrada por um excêntrico professor que faz uma rigorosa seleção de alunos.
É por meio de Richard que somos apresentados a outros personagens bastante peculiares: uma espécie de “clube do cinco” formado por jovens na faixa dos vinte anos ( Edmund ou “Bunny”, os gêmeos Charles e Camila, Henry e Francis) com um comportamento bastante incomum. Eles são esnobes e egocêntricos e parecem viver em uma realidade alternativa. Por outro lado, Richard para se aproximar deles também cria uma “persona”. Assim, grande parte da parte inicial de “A história secreta” mostra os esforços de Richard para se “enturmar” com seus colegas e tentar compreende-los, mas eles sempre permanecem inseridos dentro de uma atmosfera de mistério.
Além da meticulosa caracterização de personagens que é um dos pontos altos do livro, Tartt também se destaca pela criação do que podemos chamar de "ambientação gótica".
Sendo assim, os eventos passados narrados por Richard ocorrem sempre dentro uma atmosfera onírica que mistura realidade e ilusão, sonho e pesadelo – um elemento insólito que evoca os contos de Edgar Allan Poe. Também inseridas neste universo gótico, destacam-se as cenas noturnas, também com contornos sinistros, e a descrição dos cenários naturais relacionada com as estações do ano, principalmente o inverno que se associa com a morte.
Assim, Tartt em um estilo de gótico moderno alterna-se entre o poético e violento no que se refere âs emoções intensas e terríveis ações dos protagonistas- talvez, um traço autoral que ela resgatou de “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Bronte.
Ainda sobre as referências literárias que são muitas, a autora dá preferência a tudo relacionado a cultura grega, com bastante destaque para às tragédias clássicas, a exemplo de “As Bacantes” de Eurípides, também uma importante referência em “A história secreta”.
Tartt não demonstra pressa em desenvolver a trama e dá ênfase ao estudo psicológico dos personagens. Dessa forma, Richard vai revelando aos poucos ( ou não?) as “camadas” de personalidade de cada integrante que faz parte de sua turma, e assim segredos terríveis envolvendo-os vão sendo revelados. Também relacionado a isso ocorre no meio da trama um acontecimento bastante macabro, que irá desencadear o misterioso crime, que pela forma como é narrado por Richard, suscitam dúvidas no leitor.
Assim, “A história secreta”, com passagens mais calmas e outras mais tensas, nas quais as relações entre Richard e seus colegas tornar-se cada vez difíceis e complicadas – elas são sempre associadas a um alto consumo de drogas e álcool- vai se desenvolvendo até um final bastante dramático e impactante.
Também é importante ressaltar que o livro descreve de forma muito negativa o ambiente das universidades de elite norte-americanas. Commons, cenário, no qual se passa grande parte da ação do romance, é visto por Richard como um antro de viciados e “filhinhos de papai” que não sabem o querem da vida. Além disso, a autora também dá uma “alfinetada” na mídia quando um evento escabroso é transformado em uma espécie de fenômeno cultural e também revela a hipocrisia de uma sociedade “doente” e superficial”. No entanto, por trás de tanta superficialidade realçada em muitos capítulos do romance, é revelada a existência de um vazio existencial nos protagonistas que exprime suas falta de ambição e angústia com relação ao futuro. Neste aspecto, o livro também pode ser visto como um retrato pessimista de uma parcela da juventude americana que mesmo sendo abastada, é incapaz de progredir no campo profissional, e entrega-se a uma vida vazia e sem sentido.
Tartt por meio de sua escrita incomum, permite que o leitor mergulhe nesse "mundo" de Richard com suas intrigas, segredos e eventos trágicos. Sendo assim, “A história secreta” no final da leitura revelou ser uma espécie de tragédia moderna, na qual atos inconsequentes até mesmo cometidos por aqueles que aparentemente são os mais sensatos desencadeiam consequências irreversíveis e dolorosas que ficam marcadas na memória de um dos personagens da trama para sempre.
É possível que seja a essa “dramaticidade trágica” combinada de forma equilibrada com várias referências à literatura universal ( Dostoivisk, Euripédes,Poe, Bronte e Patricia Higthsmith) principalmente em sua escrita, que confere “A história secreta” o status de clássico moderno. Para mim, a leitura do romance foi bastante fluída e acho que é o tipo de livro “diferentão” que vale a pena ser lido e descoberto pelos leitores.