spoiler visualizarKris :] 09/04/2024
Surtei msm
A História Secreta, um livro longo e detalhado, muito complexo porém muito sutil, angustiante, belo e mórbido, afinal, ?a beleza é terror. tudo o que chamamos de belo, trememos diante disso?.
Uma das coisas que mais me chama a atenção nesta obra, entre várias outras, é a forma como ele aborda os sentimentos de culpa, remorso, desespero e como eles podem nos levar a agir de forma irracional, fazendo com que percamos contato com a nossa realidade de forma fria e cruel.
Uma das principais questões do livro, que faz e deve fazer o leitor refletir é se é realmente necessário tomar medidas extremas, muitas vezes injustificáveis, para tentar apagar erros de nossa história, será que o nosso próprio orgulho permitiria uma outra alternativa? o que seria o certo a se fazer? queimar ou ser queimado?
Ao conhecermos os seis protagonistas, já é possível ver e diferenciar suas características gritantes entre si.
Henry, o líder hierárquico do grupo, sempre se mostra uma pessoa fria, reservada, extremamente intelectual, calma e erudita, sabendo lidar com qualquer situação sem que isso o faça perder a linha.
Francis, abusador de nicotina, extremamente melodramático mas muito gentil.
Bunny, completamente o oposto de todos, muito provocador e ofensivo, não se importa tanto com nada e não liga para as consequências de qualquer ato cometido a não ser que isso o afete diretamente.
Os gêmeos Charles e Camilla, embora tendo relações conturbadas um com o outro, são sempre muito amáveis e atenciosos com seus amigos, fazendo o possível sempre para ajudar.
Richard, o 'novo' membro do grupo que se vê completamente perdido no início, se envolvendo mais do que deveria em questões complexas como se sua vida se baseasse apenas naquilo.
Os seis são extremamente influenciados pelo seu professor de grego Julian Marrow, charmoso e intrigante, um sujeito que sempre sabe o que dizer e adorado por todos a todo o momento, principalmente por Henry, que o idolatrava sem hesitação, amava-o mais do que a si mesmo e o via como um tipo de entidade divina entre humanos.
O principal evento do livro inicialmente, que funciona basicamente como um efeito dominó na história, é a prática de rituais orgiásticos dionisíacos, cujo o objetivo era a despersonalização do indivíduo, fazer com que o mesmo renascesse mentalmente e espiritualmente, talvez assim alcançando a imortalidade e provocando o aparecimento do próprio Dionísio durante o ato.
Essas práticas resultam na morte de uma pessoa a parte, os quatro envolvidos tentam esconder o acidente de todos a todo o custo, principalmente de Bunny, que logo vira a próxima vítima.
As incansáveis provocações de Bunny, originadas pelo fato de ter se sentindo excluído e não por sentir qualquer empatia ou pena pela morte ocorrida, chegam ao fim no momento em que ele é empurrado de um desfiladeiro a sangue frio por Henry enquanto os outros assistiam, aparentemente sem sentir qualquer arrependimento.
O assassinato, resultado apenas pelo medo de serem descobertos, inicialmente não faz nenhuma diferença na vida dos envolvidos, exceto Richard, que não consegue se decidir se aquilo foi o certo ou o necessário a se fazer, ver um amigo morrer na sua frente por Henry, mesmo sabendo que esse amigo não hesitaria em culpar o grupo inteiro em um tribunal como vingança, ainda acaba causando um dilema moral no personagem, que é referenciado até o final do livro.
Com o tempo, Richard começa a ver a real natureza de seus colegas, percebendo o quão todos foram manipulados por Henry, que até então era o 'gênio' por trás de tudo, o ódio de Charles que aumentava a cada dia, fazendo com que o mesmo se embriagasse diariamente, o que também afetava diretamente sua irmã, Camilla, que sofria com os abusos, tanto físicos quanto sexuais, de Charles, que se encontrava intoxicado a maior parte do tempo, e a ansiedade de Francis que o levava a fumar sem parar, tendo pesadelos e ataques de pânico constantes.
Nesse ponto, é nítida a subordinação da narração de Richard no primeiro livro, que sempre foi muito romantizada, idealizada e manipulada pelo fato do personagem se sentir inferior aos outros, deixando tudo mais esteticamente agradável, fugindo da realidade, o que consequentemente o transforma em um narrador não confiável, no segundo livro, é fácil ver como as coisas realmente eram, os problemas de cada um, as perversidades e os interesses, um grupo de jovens disfuncionais fugindo da punição de seus atos, apenas.
Após muitos acontecimentos infelizes, chegando ao final da história, onde todos os personagens estão em seu ápice pessoal, Julian descobre tudo sobre o crime cometido por seus alunos, a falta de moral deles, contrariando tudo que havia sido ensinado durante anos, o professor se sente extremamente traído, pois olhando pela sua perspectiva, ele foi quem mais sofreu com a morte de Bunny, olhou nos olhos de seus alunos por semanas sem desconfiar do que escondiam, a forma como eles conseguiram manter tudo isso por debaixo dos panos por tanto tempo, agindo como se nada tivesse acontecido, mostra uma desumanidade extrema da parte deles, era algo injustificável, Henry tenta explicar mas acaba piorando tudo, a forma como ele se desculpava como se não tivesse simplesmente matado seu 'amigo' foi o que levou a aquela ser a última vez que todos eles veriam Julian.
Henry se via desolado agora, aos poucos perdendo o controle da situação, perdendo sua sanidade e principalmente sua humanidade, sua empatia, seu remorso, coisas que ele fingiu ter desde o início, a única pessoa que lhe restava era Camilla, por quem era apaixonado, o único ser humano capaz de lhe trazer seus sentimentos de volta.
O ponto culminante é quando Charles, sob influência, ameaça assassinar Henry, como vingança por toda a manipulação, acusando-o de ter acaba com sua vida, desde do momento em que os rituais foram mencionados por ele até agora, onde todos eles tinham sangue de inocentes nas mãos, tudo isso foi causado por Henry, e ele tinha total consciência disso, dias antes ele havia confessado para Richard que começou tudo isso por simplesmente achar sua vida um tanto 'entediante', que realmente não sentia nada pelos outros, se mostrando um completo sociopata, e agora psicopata.
Após muitas ameaças, os outros conseguem parar Charles a tempo, o que faz com que Henry se veja completamente sem controle da situação, não havia mais o que ser feito, sua vida estava arruinada e não havia nada em seu alcance que poderia ser feito.
E assim, Henry pega a arma de Charles, se despede de Camilla com um beijo, e dá dois tiros contra si mesmo, dando um fim a sua agonia.
Esse suicídio tem muitos simbolismos diferentes, primeiro o fato de Henry, por ser um homem extremamente culto, que passava mais tempo no passado do que no presente, consequentemente o fazia ver o mundo de forma mais romântica, e assim, como em várias tragédias de Shakespeare, ele se mata, mostrando sua dignidade, se recusando a se mostrar vulnerável uma única vez em seu tempo de vida, basicamente se martirizando, a segunda interpretação é que o suicídio de Henry mostra como as coisas se resolviam facilmente para ele, como a morte era sempre uma opção, do mesmo jeito que ele matou Bunny quando o mesmo estava começando a se tornar um problema, ele se mata no momento em que sua vida se tornaria um problema, enfatizando mais ainda o fato de Henry não sentir nada, nem mesmo por si mesmo, e a terceira interpretação é que Henry simplesmente entra em pânico por não conseguir manipular seu destino, que independente de qual fosse, seria ruim, por isso ele sorri pela primeira vez momentos antes de sua morte, mostrando o desespero, sutilmente fazendo-o agir fora de si.
Após isso, todos os personagens seguem caminhos diferentes em suas vidas, a última página do livro descreve um sonho de Richard, onde ele encontra Henry em um tipo de cidade grega antiga, destruída, onde ele vê várias pessoas em volta de um templo, vendo algo que ele mesmo não consegue, naquele momento, Henry, com o ferimento das balas ainda no rosto, diz que está com problemas para retirar seu passaporte e que tinha um compromisso importante, durante o diálogo, vários nomes de santos são mencionados, o que abre para a interpretação de que Henry de fato não era um ser humano, mas uma entidade, talvez uma reencarnação, ou algo maior, mas nunca saberemos o que.
E assim, o livro acaba, particularmente, acho a história incrível, não possui furos, bem contada e bem desenvolvida, a escrita de Donna Tartt é repleta de figuras de linguagem e até mesmo idiomas diferentes, o que a torna facilmente viciante, o livro mergulha fundo e constrói a tensão de forma lenta, mas muito interessante, e o fato de ser narrado pelo personagem principal é o que a deixa mais livre para interpretações, pois estamos vendo tudo por apenas um ponto de vista que pode não condizer com os fatos, o que acaba incluindo o leitor a fazer suas próprias conclusões se baseando em como o personagem se mostra ao longo da narrativa, maravilhoso, um romance que merece todo o reconhecimento que tem.