Alessandro460 21/05/2023
A obra-prima apocalíptica de Dostoiévski
"Os Demônios" é considerado por muitos leitores e críticos literários o livro mais difícil de Dostoiévski. Realmente ler essa obra é uma experiência desafiadora. Por isso, eu não recomendo que você comece a ler as obras do autor a partir de "Os Demônios".
É um livro que exige uma grande "bagagem cultural". Ou seja, se você quer entende-lo plenamente - se é que isso possível- é necessário conhecer as principais vertentes de filosofia política, e, principalmente do contexto social da Rússia durante um período que abrande de 1840 a 1872 - ano que a obra foi publicada pela primeira vez.
Também soma-se a isso que o romance começa de forma um pouco confusa. Nas primeira duzentas páginas de calhamaço - tem mais sessenta páginas- o autor nos apresenta uma grande galeria de personagens por meio de comentários e extensos diálogos - um dos principais traços autorais de Dostoiévski.
Mas, se o leitor persistir, a leitura engrena e você dificilmente vai larga-lo. Ao contrário de "Crime e Castigo", "Os Demônios" tem passagens engraçadas - à moda de Dostoiévski, em que o humor bem acompanhado de uma boa dose de crítica social. De maneira implacável, Dostoiévski faz uma sátira corrosiva aos intelectuais defensores das ideias socialistas. Propositalmente, o autor os ridiculariza das mais diversas formas, seja a maneira empolada como um intelectual se expressa com palavras francesas para demonstrar sua erudição, ou os monólogos de alguns personagens - bastante extensos, que apaixonadamente defendem os princípios do socialismo, que á época da publicação do livro ganhava forma na Europa.
Mas, se o romance é engraçado em algumas passagens, uma grande sátira à visão deturpada dos socialistas a respeito da "Nova Rússia", por outro lado, ele tem trechos bastantes dramáticos, que também revelam a face mais terrível dos movimentos revolucionários.
Dois desses revolucionários (Nikolai e Piotr) que são líderes de um grupo secreto, com tendências socialistas e com características muito peculiares. Assim, grande parte dos eventos da trama giram em torno desses personagens - uma clara referência "os demônios" do título.
Em ambos chamam a atenção os traços demoníacos e as intenções malignas e até mesmo traços de psicopatia em suas ações terríveis.
É importante notar que Nikolai tem características (uma aura de mistério, enorme poder de sedução entre as mulheres, um certo desdém pela humanidade) que o associam aos vilões góticos que por seu turno tem como referência Lord Byron, um dos grandes representantes do Romantismo Inglês. - será "Os Demônios" - um livro antiromântico, que alerta sobre os perigos da idealização?
Seu amigo e companheiro de causa, o também muito misterioso Piort em alguns aspectos remete à figura o demônio tentador, que instiga a maldade em alguns personagens até levando-os a cometer crimes abomináveis.
Ou seja, é por meio da maneira como ambos são descritos, o autor sugere que eles são fruto da ideologia política de sua época, a qual eclodirá no movimento niilista que literalmente tocará o terror na Rússia, conforme demonstra uma das passagens mais marcantes o romance.
Vale lembrar que a inspiração do livro surgiu a partir de um evento real, no qual um crime brutal foi cometido na defesa de uma causa socialista. Dostoiévski ficou tão chocado com a notícia que a partir de então desenvolveu o enredo de "Os Demônios" que reflete com maestria sua preocupação e ansiedades diante das mudanças sociais e na política de seu país que, fatalmente, desembocaria no massacre durante a revolução Bolchevista.
Irônico, engraçado, e também bastante trágico e pessimista na maneira como enxerga a Rússia e, principalmente a sociedade russa sem uma identidade cultural, "Os Demônios" pode ser compreendido também como um importante registro histórico.
Nesse romance, o autor em muitos trechos faz de "Os Demônios" um poderoso manifesto político, filosófico religioso (às avessas) que de forma profética, com contornos apocalípticos, prevê os horrores que viriam a ocorre na Rússia na defesa dos ideias que, posteriormente, dariam origem ao regime comunista.
Em sua visão profética, o autor sinaliza as radicais mudanças socias e políticas que mudariam de maneira drástica a rotina do povo russo. Sendo assim, "Os Demônios" é sua obra- prima apocalítica, que como poucos previu o turbilhão ideológico que atingiria e reverbera na Rússia até a época atual.
É o tipo de livro que deve ser lido pelo menos uma vez na vida e demonstra a genialidade do autor, assim como sua habilidade de ver e revelar o que há de pior na natureza humana. Para mim, no que se refere a qualidade, está no mesmo patamar que "Crime e Castigo".
Sobre a edição: Minha experiência de leitura de "Os Demônios" foi feito com duas edições. Uma da Martin Claret e outra mais recente lançada pelo Sétimo Selo. Eu tinha comprado a primeira e por recomendação adquiri a segunda. Alternei lendo a do Sétimo Selo e em outro momento a da Martin Claret. Para isso foi interessante porque uma edição complementou a outra. A do Sétimo Selo é traduzida por Felipe e Nina Guerra considerados grandes tradutores do autor russo. Mas, devo dizer que a minha compressão de alguns trechos foi melhor na tradução do Oleg Almeida, que também revelou saber muito como traduzir Dostoiévski um dos mais geniais autores da Literatura Universal.