Paulo 06/06/2024
Panorama da mentalidade revolucionária
Eu já havia lido “Os irmãos Karamazov” e “Crime e Castigo”, ambos traduzidos por Paulo Bezerra, e “Memórias do Subsolo”, por Boris Schnaiderman. No que diz com a tradução, este “Os Demônios”, traduzido por Nina Guerra e Filipe Guerra, tem o texto mais fluido. Achei muito bom de ler e fiquei realmente impressionado com a dinâmica da narrativa, parecia até que estava lendo um livro escrito originariamente em português.
Sobre o romance, é mais um gol de placa do escritor russo. Talvez esteja diante do maior romancista da humanidade. Depois de “Os irmãos Karamazov”, este é o que mais gostei. Mas todos os outros são excelentes, fica difícil comparar as obras. Mas vamos às minhas impressões sobre “Os demônios”.
O livro é dividido em três partes, com capítulos em subdivisões, o que facilita bastante a leitura. A trama se passa em uma cidade interiorana russa, não identificada, na segunda metade do século XIX.
Na primeira parte, o foco é a vida de Stepan Trofímovitch Verkhovênski, intelectual, materialista, ateu e literato, que gostava de posar de “perseguido” e “deportado” e se dava ares de importância. Tinha fama, no estrangeiro, de ter sido revolucionário, seja verdade ou não. Teve carreira frustrada nas letras e vivia às custas de Varvara Petrovna Stavróguina, viúva rica, mulher de personalidade forte com tendências modernas e progressistas. Ambos viviam uma espécie de amor platônico, convivendo entre a paixão e o ódio recíprocos, em um relacionamento de mútua dependência.
Varvara tentou fundar uma revista literária para Stepan, em Petesburgo, mas não obteve êxito. Ela tentava realçar a “genialidade intelectual” dele perante a sociedade provinciana.
Stepan foi casado por duas vezes e enviuvou nas duas. Do primeiro casamento, teve o filho Piotr Stepánovitch, que abandonou para ser criado por parentes distantes. Foi também preceptor de Nikolai Stavróguin, filho de Varvara, mas não prosseguiu com a sua instrução. Esse fato é importante porque o próprio autor, em carta, ressalta a relação de filiação entre a geração de Stepan e os dois vilões da história, Piotr e Nikolai.
A segunda parte da obra foca mais na vida de Piotr Stepánovitch e Nikolai Stavróguin. Ambos retornam para a cidade onde se passa a trama e integram um grupo revolucionário, que pretendia subverter a ordem social e implantar o socialismo. O autor trabalha com maestria, a partir da personalidade de quatro personagens integrantes do grupo revolucionário, ideias centrais que estavam em vigor na sociedade russa.
Nikolai Stavróguin, filho de Varvara, tinha a vida ganha: bonito e rico, vivia uma vida sem sentido, entregue aos prazeres do corpo e ao materialismo. Integrava o grupo revolucionário não por convicção, mas para escapar do tédio, procurando uma vida de emoções.
Kiríllov viveu um tempo na América e encarnava o absurdo da vida, o non sense, tendo com o suicídio a saída filosófica para seus questionamentos.
Chatóv era patriota e ao final passou a acreditar em Deus. Teve um breve momento de felicidade com o retorno de sua ex-mulher e o nascimento do filho dela.
Piotr Stepánovitch é a personagem demoníaca da histórica, uma descrição incrível da mente revolucionária que procurava subverter a ordem social. Maquiavélico, manipulador e irônico, ensinava como implantar o socialismo: inventar cargos, usar o sentimentalismo, acabar com o individualismo, uma décima parte manda nos nove décimos restantes, espionagem recíproca entre os camaradas, obediência total, falta de personalidade total, propagação do alcoolismo, do mexerico, da denúncia, propagação da depravação, abafar os gênios individuais…
Na terceira parte da obra acontecem atos revolucionários concretos, mas ineficazes e até certo ponto ridículos para o desiderato de contestar o poder do czar: o grupo “revolucionário” incitam uma manifestação de funcionários de uma fábrica, avacalham uma festa social promovida pela governadora e promovem um incêndio. Mas vão além e praticam homicídios de inocentes e até de um membro do próprio grupo, sob o qual pesava tênues suspeitas de que iria deletar os demais….
Uma obra atemporal, não só pela crítica da mentalidade revolucionária e por ter profetizado a revolução comunista russa, mas sobretudo por investigar as mazelas da natureza humana. Embora as personagens principais tenham invariavelmente fins trágicos, a redenção de Stepan Trofímovitch Verkhovênski, pela aproximação com Deus, mostra uma saída esperançosa para o homem na visão do escritor russo.
Imperdível.