Leilinha @homeopatialiteraria 20/04/2020Quem somos em tempos de guerra ou de paz?“- Se todos fossem para a guerra só por causa de suas convicções, não haveria guerras (...) - E isso seria maravilhoso.”
Imagine um livro que te deixa ansioso para fazer resenha? Esse é o meu sentimento desde o término da leitura de Guerra e Paz. Esse livro, sem dúvidas, é desses que marcam a vida de um leitor, não apenas pelo desafio em relação a sua extensão (1544 páginas divididas em dois volumes nesta edição da Companhia das Letras ) e a quantidade de personagens que o compõe (mais de 500), mas pelo primor de sua narrativa: uma verdadeira obra prima.
É incrível imaginar que um livro desse tamanho possa nos prender do início ao fim, fazendo com que a gente se envolva emocionalmente com tantos personagens, especialmente com seu grupo de protagonistas.
Guerra e paz é um desses livros para se degustar, para se ler sem preocupação com metas temporais, sem a necessidade de chegar ao fim para contemplar o final de algum ciclo na vida de seus personagens: as histórias que se desenvolvem são como a vida real, cheia de ciclos que iniciam e terminam, reviravoltas, decepções, tomadas erradas de decisão...
O livro se passa entre os anos de 1805 e 1820, contemplando épocas de guerra e de paz na Rússia, estando focado, especialmente, no período entre 1805 e 1812, quando temos as guerras napoleônicas, a invasão das tropas francesas na Rússia e os desdobramentos políticos dentro do continente europeu.
O fato de Tolstoi trazer à vida tantos personagens proporciona a riqueza de inúmeros pontos de vista ao longo da narrativa. Homens e mulheres, de diferentes idades e classes sociais, vivenciam os mesmos eventos históricos, cada qual com sua visão de mundo.
O texto nos leva a inúmeros questionamentos e reflexões levantadas pelos personagens e pelo próprio narrador acerca da guerra, que é representada em suas as múltiplas facetas: o medo da morte, a adrenalina do início da batalha, o entusiasmo gerado pelo soberano, a camaradagem, o horror... Afinal, que forças impulsionam as massas para a guerra? O que leva um simples sapateiro ou um burguês sonhador a matar em campo de batalha?
Em meio a estes questionamentos, o autor traz críticas aos historiadores da época que, ao narrar tais eventos, atribuem estas forças aos heróis e líderes militares.
Para Tolstoi estes homens não seriam suficientemente fortes a ponto de mover tais massas humanas. Haveria forças maiores que levariam os homens a cometer tais atrocidades.
Ainda questiona-se o fato de que, embora os líderes militares sejam descritos em documentos oficiais como os responsáveis pelas ações estratégicas tomadas, como sendo deles a escolha total de como agir, em muitas situações, a lenta comunicação entre os oficiais - à época - tornaria impossível o total controle dos exércitos em campo de batalha ou em seu deslocamento pelo continente.
“Um comandante em chefe nunca se encontra no início de nenhum acontecimento, condição em que nós sempre encaramos um acontecimento. Um comandante em chefe sempre se encontra no meio de uma série de acontecimentos em movimento e assim nunca, em nenhum minuto, é capaz de refletir sobre todo o significado do acontecimento em curso. De modo imperceptível, minuto a minuto, o acontecimento toma a forma do seu significado, e a cada momento dessa coerente e ininterrupta transformação do acontecimento, o comandante em chefe está no centro de complicadas manobras, intrigas, preocupações, dependências, poderes, projetos, conselhos, ameaças, embustes, encontra-se o tempo todo na necessidade de responder a uma quantidade inumerável de perguntas que lhe são propostas, sempre contraditórias entre si.”
Sem dúvidas há muitos pontos a serem explorados e comentados sobre esse livro grandioso, mas, há algo central que une as muitas histórias: no cerne de tudo, há o humano. A inveja, o ciúme, o amor, a compaixão, a ganância... Quem somos nós em tempos de guerra ou em tempos de paz?
“Bem, e então para que o senhor vai para a guerra? — perguntou Pierre. — Para quê? Não sei. Porque é preciso. Além disso eu vou… — Parou. — Vou porque esta vida que levo aqui, esta vida… não me serve!”
A extensão do tempo em que a história se passa e a descrição da guerra vai nos levando a refletir sobre como um evento de tal magnitude e tal brutalidade pode nos modificar. Como eram os personagens antes e depois da guerra? Vemos suas perdas (humanas e materiais), mas também suas experiências e a forma como estas vivências levam os personagens a diferentes situações, inclusive, a buscar sentido em suas vidas, a repensar seus conceitos de felicidade e liberdade, a conhecer a si mesmos.
“Em sua vida, Pierre procurara por muito tempo, em várias direções, aquela tranquilidade, aquela concordância consigo mesmo, aquilo que tanto o impressionara nos soldados na batalha de Borodinó — havia procurado aquilo na filantropia, na maçonaria, na dispersão da vida mundana, no vinho, nas proezas heroicas do autossacrifício, no amor romântico por Natacha; havia procurado aquilo por meio do pensamento, e todas as buscas e experiências o frustraram. E, sem sequer pensar nisso, acabou adquirindo aquela tranquilidade e aquela concordância consigo mesmo apenas por meio do horror da morte, por meio das privações e por meio do que havia compreendido em Karatáiev. Os minutos terríveis que padecera na hora da execução dos prisioneiros como que varreram para sempre de sua imaginação e de suas memórias os pensamentos e sentimentos aflitos que antes lhe pareciam tão importantes.”
Uma obra grandiosa, que indico a todos os amantes da literatura e, principalmente, àqueles que gostam de personagens complexos, compostos por diversas camadas, capaz de nos trazerem inúmeras percepções.