Orlando 12/09/2018
O LIVRO É | SANTUÁRIO DOS VENTOS, POR LISA TUTTLE E GEORGE R.R. MARTIN
Antes de haver o Santuário dos Ventos, séculos atrás a raça humana ganhou as estrelas, mas uma de suas grandes naves se avariou e fez pouso forçado num planeta com muitos mares revoltos e ilhas espaçadas entre si.
Houve guerra, houve morte, mas ali a humanidade assentou uma nova morada e com o passar dos anos e décadas a tecnologia dos viajantes do espaço se perdeu e os descendentes destes viajantes criaram uma nova sociedade, quase do zero, pautada no cultivo da terra e na pesca. Voltamos ao que éramos na era artesanal e de arados.
Do que sobrou da antiga espaçonave os remanescentes tiraram de sua grande vela de metal flexível o material para construir suas asas e atravessar as grandes distâncias entre as muitas ilhas do chamado Santuário dos Ventos (veja nossa chamada de lançamento AQUI). O material é leve, flexível, quase indestrutível, já que era utilizado para impulsionar as viagens estelares através da força e energia dos ventos solares, se tornou primordial para a construção das asas necessárias para capturar os poderosos ventos do planeta e alçar aos ares os voadores.
Em um mundo com muitos ventos e baixa gravidade, os viajantes trataram de transformar as asas em um meio de transporte e comunicação entre as muitas ilhas do Santuário dos Ventos; os voadores acabaram se tornando uma elite de privilegiados, seu ofício uma honra hereditária passada dos pais para seus filhos mais velhos. E foi assim que começou a história dos povos do santuário.
Mas um dia a história de um povo, de um mundo inteiro e de um modo de vida acabou por se confundir com a história de alguns indivíduos e esses indivíduos acabaram pondo em movimento as engrenagens necessárias à revolução que mudou o Santuário dos Ventos.
No centro dessas histórias individuais está a história de Maris, filha de um pescador e de uma catadora das praias. Maris olhou encantada para os voadores e sonhou com o dia que estaria entre eles, mesmo não tendo direito algum de receber uma asa e ganhar os céus.
A sorte sorriu para a pequena garota, a sorte, o acaso e a bondade de Russ, um voador sem filhos a quem deixar suas asas. Adotada pelo bom homem, Maris foi treinada, preparada e viveu a alegria de se tornar uma voadora e de vivenciar a liberdade dos ventos e de conhecer muitas das ilhas do Santuário dos Ventos.
Entretanto, essa alegria não duraria muito, pois Coll, o filho tão aguardado por Russ, veio anos depois e, aos 13 anos de idade, o garoto teria o direito de reclamar as asas de seu pai, uma vez que era filho legítimo do voador. E, desse ponto em diante, a história doSantuário dos Ventos se entrelaça, se mistura, se confunde e iguala com a história da vida de Maris, que defenderia ano após ano seu amor ao ato de voar…
O MUNDO DO SANTUÁRIO DOS VENTOS E SUA SOCIEDADE E HIERARQUIAS
O livro escrito a quatro mãos por Lisa Tuttle e George R.R. Martin nos leva para um mundo distante da Terra, similar em alguns aspectos, mas com características bem marcantes em sua ecologia: os mares rebeldes predominam sobre a superfície do planeta e estão cheios de criaturas perigosas, as ilhas são esparsas e metais são valiosíssimos, a baixa gravidade permite o voo com auxílio das asas construídas com metal das velas de vento solar de uma antiga espaçonave colonizadora, a sociedade humana do Santuário dos Ventos lembra muito uma sociedade de aspecto medieval.
Essa sociedade é dividida bem claramente entre três grupos: os senhores da terra, título dado aos governadores das ilhas-cidade do santuário; os aterrados, que são os cidadãos comuns das ilhas e os voadores, cujos privilégios e status se equiparam aos dos próprios senhores da terra.
Os voadores gozam de uma série de privilégios e benefícios por seus serviços prestados ao Santuário dos Ventos; através deles mensagens de comércio, política, diplomacia são trocadas entre os senhores da terra de todas as ilhas. Com um conjunto de regras e leis próprias, os voadores se autorregulam, tendo em seu Conselho uma importante força coletiva para formulação de leis, penalidades e tomada de decisões que envolvem a coletividade dos voadores.
Por seus serviços e privilégios nas terras e mares do Santuário dos Ventos os voadores são admirados, respeitados e idolatradas por muitos, e por vezes odiados por uns poucos.
MARIS CONTRA O SANTUÁRIO DOS VENTOS
Com as asas do pai adotivo, Maris se tornou conhecida em todo o Santuário, tanto por seu talento quanto por sua condição de não ser uma voadora de nascimento.
Mas o inesperado ocorreu e Russ, seu pai adotivo, acaba por ganhar a dádiva da paternidade biológica e Coll vem ao mundo com todos os direitos necessários para receber as asas do pai quando chegar aos treze anos e, mesmo amando seu irmão adotivo, Maris passou todos os anos desde o nascimento do garoto sob o fantasma de perder as asas que tanto desejou.
Em Santuário dos ventos o leitor acompanha Maris em três momentos distintos de sua vida sempre ligada às lutas envolvendo a condição dos voadores na sociedade como um todo e de forma individual também.
Tuttle e Martin criam um mundo e uma narrativa pautados no constante confronto entre o “eu” e o “nós”, entre o indivíduo e o coletivo, entre tradição e ruptura. Questões políticas, culturais e de interesse estritamente particulares trazem à tona na história do Santuário dos ventos o fato de que o indivíduo, mesmo defendendo seus interesses, é capaz de mover o mundo em prol de outros indivíduos ao seu redor.
É assim que acompanhamos Maris ao longo dos anos saindo de suas zonas de conforto para entrar em lutas ideológicas e mudanças que ora compreendemos como puro egoísmo da garota, ora como revolta social e desejo por mudanças que criem um mundo mais igualitário, onde competência, habilidade e aptidão são itens mais essenciais à sobrevivência da sociedade quanto seus costumes enraizados e cristalizados de forma imutável.
A narrativa a quatro mãos de Santuário dos ventos alterna momentos de descrição e contextualização do mundo criado pela dupla de autores com momentos de real condução narrativa, aqueles cujas ações, escolhes e motivações dos personagens fazem as engrenagens do mundo fictício da obra se moverem no sentido da mudança.
Claramente dividido em três capítulos distintos – sobre os quais prefiro não dar detalhes para não estragar certas surpresas da obra – nos quais desfilam um belo e instigante elenco de personagens, a começar pela protagonista Maris e seu constante embate entre tradição e mudança.
Ao lado da jovem voadora estão ótimos coadjuvantes como seus alunos, amigos voadores e até mesmo os “antagonistas” como Val Uma Asa, de longe um dos melhores e mais interessantes personagens da trama, cuja percepção e entendimento da sociedade dos voadores rendem comentários mordazes e irônicos que trazem em si uma série de reflexões sobre as atitudes de Maris e suas motivações.
A narrativa de Santuário dos Ventos é bem direta, sem nenhuma experimentação cronológica, idas ou vindas no tempo; não, aqui é tudo uma linha reta bem delineada em seus três segmentos da adolescência, idade adulta e maturidade de Maris.
Como tal, a obra constrói esses três momentos dando ao leitor a densidade dessas três fases: o primeiro capítulo tem muita energia, momentos de descoberta, impulsividade, alegria, dúvidas, desejos de mudança, atitudes imprudentes, tal qual é a adolescência real. Nesse primeiro capítulo temos a nítida sensação de que Santuário dos Ventos será um livro Young Adult cheio dos vícios desse tipo de narrativa. O que seria desastroso…
Mas felizmente a versatilidade dos autores nos livra dessa amargura no segundo capítulo, onde a obra ganha uma densidade enorme e seus temas se ampliam, bem como a reação dos personagens diante de situações mais difíceis e cheias de nuances, dando à narrativa tons de cinza diversos e um prisma multifacetado de percepções e ideias. Nesse capítulo nos pegamos constantemente transitando entre concordar e discordar do mesmo personagem em situações diferentes e conforme suas ideias são desenvolvidas ou afetadas pela presença de outros personagens na trama.
A própria narrativa se torna mais obscura nessa “idade adulta” da cronologia do livro, as rivalidades se adensam e a perspectiva dos voadores e sobre eles sofre mudanças severas no mundo do Santuário dos Ventos e, o melhor de tudo, na visão do leitor também.
E, felizmente mais uma vez, a narrativa segue nessa densidade no terceiro e último tomo da obra, com questões ainda mais delicadas e decisões ainda mais cheias de facetas e desdobramentos, o que deu ao livro um fechamento diametralmente oposto ao seu começo que dava entender a entrega de uma obra pautada pelos delírios juvenis de uma adolescente egoísta e inconsequente.
Meu único ponto negativo sobre a obra é a “lentidão” da narrativa de Tuttle e Martin emSantuário dos Ventos; não sou um grande fã da narrativa do criador das Crônicas de Gelo e Fogo justamente por este aspecto excessivamente arrastado de seu texto, o que me dá uma sensação de algo enfadonho demais e aqui nessa obra em parceria com Tuttle parece que Martin imprime muito essa sua característica à obra. Santuário dos Ventos, a despeito de um livro sobre asas e voo, acaba por ser extremamente arrastado em muitos pontos.
Claro, não tem como diluir o que é feito por Martin e o que é feito por Tuttle no livro, mas acredito que as partes onde Maris conduz tudo e sua personalidade é trabalhada e lapidada na obra, seja a mão de Tuttle que puxa as cordinhas para que a protagonista seja não só mais uma personagem feminina, mas uma personagem feminina construída por uma escritora, o que é muito, muito importante.
A despeito do mundo criado pelos autores, o Santuário dos Ventos me lembra demais o mundo de Terramar, criando pela mestra Ursula K. Le Guin; não só isso, a própria narrativa de Tuttle e Martin me lembraram demais a obra de Le Guin que tem na trajetória de Jed, O Gavião e grande mago de Terramar, uma narrativa de crescimento, de autodescoberta, aprendizado e, por que não, redenção.
Em muitos momentos de Santuário dos Ventos percebi situações semelhantes no sentido de construção e crescimento de Maris iguais aos que Le Guin fez para Jed em O Feiticeiro de Terramar, não tenho dúvida alguma de que a grande obra de Le Guin seja fonte de inspiração para Santuário dos Ventos. Outro fator que me reforça essa grande influência é a semelhança entre os dois mundos: grandes extensões de mares revoltos, arquipélagos formando “vilarejos” e “regiões”, a navegação como método principal de transporte e uma casta que tem prestígio enorme na sociedade (em Terramar os magos, no Santuário os voadores).
SCI-FI OU FANTASIA? SCI-FAN!
Santuário dos ventos ocupa uma área de interseção entre fantasia e ficção científica, mas não põe definitivamente os pés em nenhum dos dois gêneros: não há magia, não há espadas, mas também não há tecnologia capaz de tirar as sociedades do planeta de uma longa era similar ao que foi nossa idade média. No entanto toda a origem do mundo do Santuário é pautada na chegada de colonizadores espaciais, inclusive advindo das velas de vento solar o material das quais as asas dos voadores são feitos.
Santuário dos ventos me parece um híbrido competente de uma fantasia fictícia, ou seria de uma ficção fantástica? Acho que a bem da verdade isso pouco importa, pois o leitor tem aqui uma ótima leitura que flerta com desdobramentos da Fantasia e da Sci-Fi.
Longe de ser o livro que vai mudar os rumos de qualquer desses gêneros, Santuário dos Ventos é uma narrativa inteligente, agradável e cheia de reflexões e análises que podem ter muito de suas proposições transportas para o mundo real, realizando com isso a competente função da boa obra literária: refletir sobre a realidade através de um mundo ou de uma história fictícia e fantástica.
Para os que querem uma leitura inteligente e ao mesmo tempo direta e sem peripécias narrativas, Santuário dos ventos é a pedida e, soma-se a isso a completude da obra em si mesma: nada de uma extensa saga de 10 livros cujos próximos volumes o leitor nem sabe se chegarão aqui ou se o autor estará vivo para escrever as continuações; não, aqui é abrir, ler, fechar e encerrar a história de Maris no Santuário dos Ventos.
Faço aqui, nesse fechamento, a ressalva aos que, inadvertidamente venham aoSantuário dos ventos em busca de grandes batalhas aladas regadas com sangue, espadas, magias ou armas laser: Santuário dos ventos passa longe, muito longe disso.
SANTUÁRIO DOS VENTOS | SOBRE OS AUTORES
George R.R. Martin nasceu em 1948 em Nova Jersey e é formado em jornalismo pela Northwestern University, em Chicago. Publicou sua primeira história de ficção científica, “O herói”, em 1971, e logo se firmou como escritor de rara qualidade, ganhando três Hugo Awards, dois Nebula Awards e o prêmio Bram Stoker.
Passou dez anos em Hollywood como roteirista e editor de histórias nos seriados de TVAlém da Imaginação e A Bela e a Fera – neste último como roteirista e produtor. Depois, iniciou sua série fantástica “As Crônicas de Gelo e Fogo”, que deu origem ao sucesso da HBO – Game of Thrones.
A série conta até agora com os títulos A guerra dos tronos, A fúria dos reis, A tormenta de espadas, O festim dos corvos e A dança dos dragões, todos publicados pela LeYa.
Lisa Tuttle ganhou o John W. Campbell Award de melhor escritora em 1974 e desde então escreveu vários contos e novelas, incluindo Lost Futures, que foi indicado ao Arthur C. Clark Award, e The Pillow Friend. Além disso, escreveu diversos livros infantis.
Nascida no Texas, atualmente mora com o marido e a filha numa área remota na costa ocidental da Escócia.
SANTUÁRIO DOS VENTOS | FICHA TÉCNICA
• Tradução: Luis Reyes Gil
• Páginas: 416
• ISBN: 978-85-441-0617-4
• Formato: (altura, largura e lombada) 16 x 23 x 2,1 cm
• Gênero: Ficção | Fantasia
• Peso: 700g
• Preço: R$ 49,90
• ISBN Ebook: 978-85-441-0618-1
• Preço Ebook: R$ 33,99
PREMISSA: - 90%
DESENVOLVIMENTO - 85%
PERSONAGENS - 90%
CONTEXTUALIZAÇÃO - 100%
PROCESSO NARRATIVO/ NARRATIVIDADE - 90%
CONCLUSÃO/ DESFECHO - 85%
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