spoiler visualizarNah 15/10/2021
UM DOS ROMANCES MAIS IMPORTANTES DA LITERATURA NACIONAL
Antes de qualquer coisa, a gente precisa falar sobre a relevância dessa obra pra literatura brasileira e pra história do país como um todo. A grande importância que envolve Úrsula é o fato de que ele foi o primeiro romance brasileiro escrito por uma mulher. E digo mais, uma mulher negra e nordestina. Além disso, Úrsula é o romance precursor do abolicionismo. Então a gente meio que pode dizer que Úrsula caminhou para que outras obras de viés abolicionista pudessem ser publicadas aqui.
Há que se falar também que o romance é um marco porque pela primeira vez na história da literatura brasileira a gente tem num livro personagens negros que não só tem nome, como tem também personalidade, história própria, são capazes de fazer reflexões sobre sua condição de escravizados e de fazer o leitor refletir sobre o sistema escravista que imperava aqui.
É meio surreal pensar que no ano de 1859, em pleno século XIX, e justamente no Maranhão, que, segundo dados expostos num dos posfácios do livro, era um dos estados com maior índice populacional de escravizados no país, uma mulher negra e pobre tenha escrito uma obra tão relevante, importante e revolucionária.
E detalhe, a gente tem que falar também que o livro Úrsula fez certo sucesso na época de sua publicação. Só que aí a gente encontra um problema. Porque esse livro simplesmente desapareceu e permaneceu esquecido por muito tempo. Tanto o livro como a autora sofrem um processo de apagamento e a obra só vem a ser resgatada já na segunda metade do século XX, por um historiador que teve a sorte de encontrar um dos exemplares originais em um sebo.
O livro vai trazer pra gente dois personagens centrais, que são pessoas brancas e boas, na medida do quão boa podia ser considerada uma pessoa branca naquela época. A gente começa a história com o mocinho, Tancredo, fazendo uma viagem em seu cavalo. Mas ele acaba sofrendo um acidente e é resgatado por Túlio, um negro escravizado, que vai prestar socorro pra esse viajante e levá-lo até a casa em que ele serve. E é aí que entra a mocinha da história, Úrsula, que vai cuidar desse viajante e os dois vão acabar se apaixonando.
E daí em diante o livro vai contar pra gente o que esses dois personagens tem que fazer pra poder viver esse amor. Só que nem tudo é fácil e num momento em que Tancredo precisa se ausentar de perto de Úrsula ela acaba conhecendo um homem na floresta. E aí a gente conhece o grande vilão dessa história: Fernando, o tio de Úrsula, que vai fazer tudo o que está ao seu alcance para se casar com ela. Só que Fernando é o grande vilão não apenas por querer atrapalhar o romance da mocinha. Ele é o grande vilão também porque ele é conhecido pela forma degradante que trata os seus escravos.
Só que o grande trunfo desse livro não é a luta de Tancredo e Úrsula para viver seu amor. A grande genialidade desse livro consiste em três personagens: Túlio, dona Susana e Antero. Ambos são negros, escravizados, e vão, cada um a seu tempo, expor para o leitor suas experiências enquanto pessoas escravizadas.
A gente tem uma passagem nesse livro que é de extrema importância, e talvez seja o auge do romance, que é o relato de dona Susana sobre como ela foi sequestrada, arrancada de seu país em África, e trazida para o Brasil. Então ela vai expor pra gente, em um diálogo com Túlio, todo o sofrimento que ela passou. O sequestro, a forma como ela teve que deixar sua família, seu país natal, sua cultura e suas tradições e como ela simplesmente foi jogada num país completamente diferente, obrigada a se adaptar a uma nova realidade onde ela é simplesmente uma propriedade. É um relato de cortar o coração. Ela expõe pra gente toda a experiência passada no navio negreiro que a trouxe de África e vai levantar uma questão sobre o que é de fato a liberdade.
Porque enquanto Susana foi tornada escrava, Túlio já nasceu escravo. Então quando Tancredo dá um dinheiro a Túlio e ele consegue comprar sua carta de alforria, Susana vai virar pra ele e falar: Você tá livre? Mas você nunca soube o que é a liberdade, como pode dizer então que é livre? E nesse momento Túlio entra em mais uma reflexão sobre sua condição de escravizado, agora ex-escravizado, e percebe que, muito embora ele tenha conseguido sua carta de alforria, ele permanece ao lado de Tancredo porque ele se sente grato ao homem branco por ter lhe proporcionado a compra de sua liberdade.
E aí a gente tem uma sacada genial de Maria Firmina ao expor pro leitor que, enquanto os brancos tinham liberdade como um direito nato, Túlio teve que comprar a sua. Outra grande sacada de Maria Firmina através de Susana é colocar o homem branco como bárbaro e o negro como vítima de sua barbaridade. Ela propõe uma inversão de papéis porque até então o negro era visto como selvagem e o branco como aquele que vai ?civilizar? o negro.
Então assim, apesar de a trama central do livro ser o romance entre Úrsula e Tancredo, a grande genialidade do romance é a forma como Maria Firmina dá voz a pessoas que sempre foram silenciadas. A gente vê, pela primeira vez na história da literatura brasileira, pessoas negras expondo os horrores da escravidão. E se é surreal pensar que Maria Firmina conseguiu fazer isso ainda no século XIX, é surreal pensar também em como a existência dessa obra, e a existência de sua autora, foram apagadas e esquecidas por tanto tempo.
Eu não sei quem foi o historiador que conseguiu enfim recuperar esse livro, mas eu fico aqui pensando: e se o romance não tivesse sido recuperado? Será que a memória de Maria Firmina e Susana e Túlio e Antero ainda estariam encerradas no obscurantismo social?