Otávio Augusto 15/02/2024Nunca foi pelo bem do povoNunca foi pelo bem do povo
Quem deseja começar a ler teatro inevitavelmente se depara com as peças de Shakespeare e as tragédias gregas. Talvez Hamlet e Édipo rei sejam as peças que mais atraiam atenção dos leitores. Entretanto, não são peças muito simples de serem lidas, seja pela linguagem rebuscada, seja pelas referências mitológicas, nem sempre as mais comuns. Em contrapartida, Um inimigo do povo, de Henrik Ibsen, é uma peça de 1882, bastante acessível e cuja temática é atemporal: o conflito entre interesses privados e interesses públicos em uma democracia política.
O enredo se passa em uma pequena cidade da Noruega cuja principal fonte de riqueza é um balneário que atrai turistas. O Dr. Stockmann, um médico da estação balneária, recebe em sua casa Peter Stockmann, seu irmão e prefeito da cidade, e os jornalistas do “Mensageiro do povo” Hovstad e Billing. Dr. Stockmann recebe uma carta que o informa da poluição das águas do balneário. Sabendo disso ele recomenda, em prol da saúde coletiva, que o balneário seja fechado imediatamente devido ao risco de disseminação de doenças entre a população. Os jornalistas, de início, mostram-se favoráveis à divulgação pública dessa informação, supostamente, para o bem de todos; em contrapartida, o prefeito repudia a ideia de Dr. Stockmann, alegando que, sem o balneário, a cidade perderia boa parte de sua renda, comércio e emprego. A partir disso, acompanharemos Dr. Stockmann em sua tentativa de tornar pública a sua informação.
Uma leitura superficial pode considerar que o Dr. Stockmann é apenas um sujeito altruísta que em confronto com os interesses de seu irmão, um individualista. Entretanto, é evidente que, assim como seu irmão, ele também almeja poder e apoio da mídia – ambos podem ser vistos como adversários em um jogo de poder que se torna explícito no terceiro ato. Nesta ocasião, Dr. Stockman se dirige à redação a fim de publicar a notícia do balneário. Inicialmente, os dois jornalistas e o impressor do jornal, Aslaksen, mantêm-se fiéis ao objetivo do médico. Porém, surpreendidos com a chegada do prefeito, modificam diametralmente suas intenções: agora eles não podem publicar nada contrário à opinião da população, que desconhece a poluição do balneário. Instaura-se um confronto entre o médico e o prefeito. O médico chega a pôr o boné do prefeito e a segurar a sua bengala, objetos que remetem a uma coroa e a um cetro, respectivamente, ambos símbolos de poder, autoridade. Mais do que isso, ele ainda diz ao prefeito: “Você deve me respeitar, meu caro Peter. (...). Agora sou a autoridade. Se você é o delegado de polícia eu sou o prefeito da cidade, a autoridade máxima! ”.
Ainda nesse ato, tornam-se claros os interesses individuais dos outros personagens. Hovstad é um jornalista interessado em fazer uma revolução popular e acabar com as autoridades; ele chega a confessar que “Nós, jornalistas, não valemos grande coisa”. Billing se revela sedento por um cargo na prefeitura, logo não pode contrariar o prefeito. Aslaksen é um pequeno burguês, proprietário de imóveis cuja valorização depende do turismo do balneário, por ser próximo a ele. Esses três personagens, assim como os dois irmãos, agem guiados por interesses pessoais trasvestidos de interesses públicos. A contaminação do balneário que da cidade é símbolo da sordidez moral das pessoas que têm a capacidade de manipular a opinião pública.
Também destaco que, anteriormente, ainda no primeiro ato, Dr.Stockmann, alegara à sua família que “Peter é um solitário. Não tem família onde possa se abrigar; tudo o que ele tem são negócios, negócios. ”. Somando-se essa afirmação à cena descrita no terceiro ato, fica evidente que essa fala do Dr. Stockmann representa uma projeção de sua ânsia interna por poder sobre a figura de seu irmão. Fora isso, o fato dos jornalistas Hovstad e Billing entrarem e saírem da casa do Dr. Stockmann sem avisos sugere que há uma certa proximidade entre eles, um vínculo mais estreito do que o comum entre um mero leitor de jornal com seu editor. Interpreto isso como mais um sinal de que Dr. Stockmann quer ter a opinião do povo a seu favor e vê seus companheiros jornalistas como facilitadores de seu objetivo.
Posteriormente, uma assembleia é feita com os dois irmãos e a população. O público se mostra irredutível quanto a publicação dos estudos de Dr. Stockmann: eles não devem ser expostos de maneira alguma. Por consequência, Dr. Stockmann se torna um inimigo do povo, rejeitado por todos. Nesse momento, o médico faz sua defesa levantando grandes questionamentos: até que ponto a vontade da maioria é a verdade, sendo ela composta por mais imbecis do que sábios? É justo que esses ignorantes governem o povo¿ Fica evidente uma forte crítica à democracia, que confere os mesmos poderes a todos os cidadãos, independentemente de seu intelecto. Stockmann chega a dizer que o povo está imerso em corrupção e sujeira, e que apenas ele tem a verdade. Novamente, vejo uma ambiguidade em seu caráter: ainda que ele agisse em prol da população, continuaria prepotente ao se considerar o único detentor da verdade, como se fosse um profeta ignorado pelo povo.
Ao fim da obra, após ser rotulado como inimigo do povo, o Dr. Stockmann é demitido do cargo de médico do balneário, sua filha professora também é demitida da escola em que trabalha, e os filhos pequenos são expulsos da escola; há um prenúncio de uma tragédia. Contudo, o desfecho é decepcionante. Morten Kiil, o sogro de Stockmann, faz uma visita e lhe fala que comprou as ações do balneário com o dinheiro reservado à herança para a família de Stockman, de maneira que se os estudos de Stockmann fossem publicados, as ações do balneário se desvalorizariam e pouco dinheiro restaria à família, a qual já está em maus bocados. Aparecem então os jornalistas falsamente sensibilizados com a situação de Stockmann, oferecendo-lhe a oportunidade de manipularem a opinião midiática em seu favor. Neste momento, o autor poderia fazer seu protagonista aceitar a oferta, o que finalizaria a obra evidenciando a incapacidade de nós, como indivíduos, não sermos manipulados por ou manipuladores da opinião pública; seria uma demonstração cabal do individualismo maquiavélico e latente que se escondem debaixo do véu do manto dos que se autoelevam à categoria de heróis da pátria, mas não passam de pseudo-heróis. Confesso que torci muito por esse final. Mas a peça termina com Dr. Stockmann aceitando seu fardo de inimigo do povo e decidindo educar seus filhos e outros alunos, em número inicial de pelo menos doze, para serem “homens extraordinários”. Ora, doze são os apóstolos de Jesus, o maior dos profetas do cristianismo. Dessa forma, Ibsen explana a obsessão delirante desse personagem ambíguo.
Por fim, ressalto que tudo isso não passa de minha interpretação da obra, uma visão que tive na primeira leitura. Pelos pontos que levantei, considero uma obra essencial para compreendermos os tempos de hoje, em que cada vez mais a hipocrisia e falsidade dominam o espaço político. Há séculos já era assim. Ainda temos muito a evoluir.