Marcelo217 07/08/2023
Uma surpresa boa
Quando se fala em José Lins do Rêgo, é unânime entre as pessoas mencionarem a trilogia do ciclo da decadência da cana-de-açúcar. Após reler O Ateneu, finalmente me dei uma chance e confesso que não esperava uma leitura tão boa como a que eu fiz.
O livro traz aspectos autobiográficos, uma autoficção que acredito vir em grande parte do relato de sua memória (assim como acontece no livro de Raul Pompeia, grande influência do autor). A semelhança na temática se aproxima muito de Rachel de Queiroz ou Graciliano Ramos (consegui ver um pouco de Vidas Secas, O Quinze e São Bernardo no texto do José Lins). Ao contar sobre a vida no Engenho Santa Rosa, o autor compartilha a vivência regionalista nordestina. Carlos, neto do dono do Engenho, vive a primeira infância sob os cuidados dos tios e avô, que é um convite para o leitor adentrar na vida rural simples do início do século XX.
Diferente de suas inspirações e semelhantes, José Lins do Rêgo apresenta uma escrita muito objetiva, sem descrições elaboradas e com um rico vocabulário regional. Com uma cronologia simples e espontânea, é contada a história de maneira muito orgânica. O autor mistura sentimentos memorialistas a uma descrição de uma época onde os coronéis mandavam e os negros, mesmo libertos, ainda reproduziam a dinâmica escravista. O autor mostra aspectos do patriarcalismo, tirania, religiosidade e esquemas ideológicos de forma balanceada e às vezes imparcial. A vida interiorana da época apresentava uma sistemática muito própria e a sua constituição e relevância são descritas de maneira muito real.
Sob a pele de Carlos, o autor desenvolve uma personagem simples que cresce rodeado na dinâmica e na cultura rural. As descrições apresentam uma reflexão madura sobre os acontecimentos vividos pelo menino. É interessante os aspectos melancólicos como gatilhos para a vida desprendida da moral, onde Carlos muda através do abandono (primeiro dos pais e segundo da tia Maria). É retratado o amadurecimento precoce pelas influências do meio, do seu tio Juca e do primo Silvino. O amor ingênuo com a prima Maria Clara, a iniciação sexual com a Negra Luisa e a primeira mulher, Zefa Cajá.
Através das memórias dispostas em capítulos, o autor compartilha sua vivência com traços do tradicionalismo nos costumes, o dualismo na postura dos senhores (avô e tios), o servilismo dos empregados e a dinâmica coletiva nas fazendas. Ele descreve de uma forma simples direta aspectos da cultura popular (lendas, sobrenatural), religiosidade (trazida como uma prática elitizada e a falta dela no ambiente rural) e comportamentos normalizados pelos indivíduos (violência, justiça popular, infidelidade, pedofilia, zoofilia, etc.)
José Lins do Rêgo, nesse livro, inicia a jornada de Carlos que me deu muita curiosidade para seguir a leitura dos outros dois volumes. Mesmo não se tratando de uma escrita extraordinária ou de uma temática inédita, o que faz do livro uma boa leitura é o relato simples, a linguagem polida, descritiva na medida certa e a capacidade imersiva do relato nos transportar para a representação do momento histórico da vida ficcionada do autor.