spoiler visualizarSthe 02/09/2024
Choque de realidade
"O Cortiço", escrito por Aluísio Azevedo e publicado em 1890, é uma obra-prima do Naturalismo brasileiro que expõe, com crueza e riqueza de detalhes, a realidade social do Rio de Janeiro do final do século XIX. O romance retrata a vida de diversas pessoas que vivem em um cortiço, um tipo de habitação coletiva popular, e revela as tensões de classe, raça, e etnia em uma sociedade marcada pela pobreza, pela ganância e pelo preconceito racial.
O cortiço que dá nome ao livro é uma comunidade vibrante e caótica, onde convivem pessoas de diferentes origens, como portugueses, negros, mulatos, e brasileiros pobres. Essa diversidade étnica e social cria um microcosmo da sociedade brasileira da época. Cada personagem traz consigo uma história e um destino que refletem os dilemas e desafios de sua condição. João Romão, o avarento dono do cortiço, é o arquétipo da ganância desmedida. Ele personifica a busca pelo lucro a qualquer custo, explorando seus inquilinos e utilizando práticas desumanas para expandir seus negócios. A portuguesa Bertoleza, que vive em união com João Romão, é uma personagem fundamental para entender a crueldade social e o racismo da época. Ela é enganada e explorada por ele, sendo usada como mão de obra barata e como meio para sua ascensão social.
Outros moradores do cortiço incluem Jerônimo, um português trabalhador que se envolve com Rita Baiana, uma mulata sensual que representa a figura do "exótico" e do "desejo" na narrativa. A relação entre Jerônimo e Rita evidencia o choque cultural e os conflitos internos de identidade, que se tornam ainda mais profundos pela luta de classes e pela tensão racial que permeiam suas vidas.
O romance é marcado por uma descrição intensa da miséria, do alcoolismo, da violência, e do cotidiano opressor dos moradores. O cortiço é visto como um organismo vivo, pulsante, que cresce e se transforma de acordo com os interesses econômicos de João Romão e das dinâmicas de poder estabelecidas. Nesse cenário, a vida humana se revela frágil, sujeita às forças implacáveis da fome, da desigualdade, e da marginalização.
O final de Bertoleza é um dos momentos mais impactantes e cruéis da narrativa. Após anos de trabalho árduo e exploração, ela é traída por João Romão, que entrega sua condição de escrava fugitiva às autoridades para limpar sua reputação e se casar com a filha de um comerciante rico. Sem saída, Bertoleza, em um ato desesperado de resistência à captura, tira a própria vida cortando o ventre com uma faca de cozinha. Essa cena brutal é o ápice da denúncia social de Azevedo, evidenciando a opressão e o desespero dos pobres e dos negros em um sistema movido pela cobiça e pelo desprezo pela vida humana.
Em "O Cortiço", Aluísio Azevedo revela o pior da natureza humana em um ambiente marcado pela pobreza, pelo racismo, e pela luta pela sobrevivência. A obra é um retrato perturbador, porém necessário, das desigualdades sociais e da indiferença humana, que, embora ambientada no século XIX, continua a ressoar com uma crítica poderosa e relevante sobre as dinâmicas de opressão e exploração que, infelizmente, ainda persistem em nossa sociedade atual.