Dani 13/03/2024
Sustenta a realidade na qual critica.
É difícil compreender quem recomenda esse livro para dar início aos clássicos brasileiros e principalmente como ainda é uma leitura obrigatória nas escolas. É um livro pesado, predominantemente racista que me incomodou do início ao fim e estragou a minha experiência do vínculo que se deve aflorar da história com o leitor.
O racismo é extremo não só pelos personagens, mas pelo autor que descreve todas as mulheres pretas com palavras excessivamente repulsivas e segue os estereótipos da ''mãe preta'' ou a ''mulata''. O autor parece não saber descrever uma mulher preta que estivesse dentro do padrão de beleza estético sem a sensualizar, acrescentar alguma espécie de lascívia e que a própria fosse culpada de sua própria beleza ou essa tal ''sensualidade'' que a carregava, como se fosse proposital por qualquer assédio sexual que viesse a sofrer em algum futuro.
A mão pesava sobretudo para falar de mulheres negras, mas seguindo o machismo temporal, as descrições das mulheres brancas eram igualmente desprezíveis, por uma fixação de características ruins, apequenando-as, não possuindo uma significação, e até mesmo as que estivessem dentro do padrão de beleza do auge da branquitude, não era reconhecida declaradamente. Em contrapartida os homens tinham descrições amenas, flácidas, que massageavam o ego de sua espécie, recebendo até elogios que auxiliavam os traços estruturais da misoginia da época.
Para não se largar o livro por desgosto e tentar embarcar na história em si, é preciso relembrar a todo momento o tempo em que o livro fora escrito e, tentar separar a história do autor; mas também recomendo verificar a lista de gatilhos antes de lê-lo, pois há a romantização do relacionamento abusivo, ciúmes extremos, normalização da violência contra a mulher, homofobia, assédio sexual, estupro, morte a sangue frio, entre outros.
A depender do leitor, ele terá um choque de realidade pela identificação com as favelas do Rio de Janeiro, não só pela estética, mas o entendimento para com a polícia, a obediência ao dono do cortiço, o enfretamento com os cabeças de gato e todo o partido tomado pelos dois lados e até mesmo pelos policiais etc. E daí partimos para a empatia com os personagens pelo arco de cada história e até nos divertimos em certas situações.
O autor sabia no íntimo, detalhadamente, as dores que algumas pessoas sofriam e outras nem sequer desenvolveu o lado psicológico, como por exemplo o caso de Piedade e a Bertoleza, onde é possível identificar mais uma vez o racismo estrutural. Ele tipifica de jeito intenso o que Piedade sentiu aquela noite quando o marido não voltou para a casa, e essa parte da leitura dará aflição a qualquer pessoa que já teve a experiencia de um relacionamento que lhe fez mal, entendendo que ali não há exageros, mas o caso de Bertoleza foi extremamente angustiante, uma vez que o autor esquece da existência da personagem, apenas discursou brevemente no início e durante todo o corrido arco da personagem ao final da história, que o leitor já conseguiria entender que o fim de Bertoleza estava próximo, é descrito de forma crua e rasa, como se a mulher não tivesse sentimentos profundos e íntimos, concluindo ao final ridículo.
Então, ao total do livro, se passa uma mensagem sobre uma realidade concreta, e no desfecho agonizante isso é afirmado, porém, ao mesmo tempo, o autor faz parte desse contexto, ele contribui para a realidade ser como é, e consequentemente faz soar esse livro ser uma tremenda hipocrisia.