Fabio.Nunes 28/10/2024
Distopia ou utopia?
Admirável mundo novo - Aldous Huxley
Editora: Biblioteca azul, 2022
Eis a melhor distopia que li até aqui (de longe!).
Huxley demonstra grande erudição e criatividade ao criar uma obra assustadoramente atual, talvez não soubesse o quanto de suas projeções seriam corroboradas pela realidade e olha que essa obra foi publicada em 1932!).
O mais apavorante é ler esse livro e se sentir seduzido por essa sociedade distópica – que para muitos deveria ser chamada de utópica.
COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE.
Estes são os motes do governo mundial.
Uma sociedade de castas formada por indivíduos geneticamente selecionados, gerados in vitro, e fortemente condicionados psicologicamente; onde cada pessoa ‘nasce’ adestrada a se sentir plenamente satisfeita em sua classe social e suas funções.
“Esse é o segredo da felicidade e da virtude: gostar do que se tem de fazer. Todo condicionamento tem este objetivo: fazer as pessoas gostarem de seu destino social e inescapável.”
Uma sociedade que tem o consumismo como fonte de geração de renda e estabilidade, onde o velho é descartado para que o novo seja adquirido.
“As prímulas e as paisagens, assinalou, têm um defeito grave: são gratuitas. O amor à natureza não mantém as fábricas ocupadas.”
“Imagine a loucura de permitir que as pessoas participassem de jogos elaborados que não fazem absolutamente nada para aumentar o consumo. É loucura.”
“É melhor se livrar que consertar. Quanto mais remendo, menos riqueza;”
Acima de tudo, esta é uma sociedade baseada no princípio do prazer como sinônimo de felicidade, em que o tempo entre o desejo e sua realização é o menor possível. Nela, existe o soma, a droga perfeita: que gera o prazer, sem causar efeitos colaterais e possui os melhores efeitos possíveis no cérebro – funcionando como férias da realidade, caso seja necessário.
Essa é uma comunidade onde os horrores da velhice, da dor e da morte foram mitigados, e onde não há espaço para religião, ciência, arte, monogamia, amores. Todos pertencem a todos, numa alegoria do amor livre e descompromissado.
“Algum de vocês já foi obrigado a viver por um longo intervalo de tempo entre a consciência de um desejo e sua realização?”
“Família, monogamia, romance. Exclusividade em toda parte, uma canalização estreita de impulso e energia.”
“Porque nosso mundo não é igual ao mundo de Otelo. Você não pode fazer calhambeques sem aço... e não pode fazer tragédias sem instabilidade social. O mundo agora é estável. As pessoas estão felizes; elas conseguem o que querem e nunca querem o que não podem obter. Estão bem de vida; estão seguras; nunca ficam doentes; não têm medo da morte; são abençoadamente ignorantes de coisas como paixão e velhice; não são atormentadas por mães ou pais; não tem esposas, filhos ou amantes com os quais se emocionar fortemente; estão tão condicionadas que praticamente não conseguem deixar de se comportar como deveriam. E se alguma coisa der errado, temos o soma.”
Embora seja uma sociedade secular, há a divinização da figura de Ford, invocado como uma espécie de Deus (claramente uma sátira do autor).
Quantos pontos em comum com nossa realidade, não?
Esta é uma obra cheia de anti-heróis. Lenina é a mulher condicionada-padrão, importante no desenrolar da trama, mas que não gera empatia – a não ser nos momentos em que sofre. Bernard é aquele que nos engana ao parecer ser o diferente, o elemento disruptivo dessa sociedade, mas se mostra uma crítica de Huxley ao crítico social hipócrita, que só busca sua própria afirmação, sem de fato abrir mão de seu conforto ou de seus privilégios. Mustapha Mond, o controlador mundial, é a personagem mais consciente, mas que abandona sua própria consciência em nome da estabilidade social. Seu contraponto é Jonh, o selvagem, aquele que deveria representar a humanidade tal qual conhecemos e que, sutilmente e genialmente, Huxley apresenta como outra personagem fortemente condicionada por sua religiosidade puritana e seu meio social (basicamente um bobão que só decorou frases de Shakespeare e de rituais religiosos de seu povo – apenas um outro repetidor).
Leiam e releiam o capítulo 16, onde Jonh e Mustapha têm um profundo diálogo – aquilo é puro ouro.
Deixando de lado o desenrolar da tragédia, este é o tipo de livro que todos deveriam ler para refletir sobre si mesmo e nossa sociedade.
Vamos começar pela pergunta fundamental: o que você acha mais eficaz – o controle pelo medo ou o controle pelo prazer? Huxley claramente responde esta questão, embora deixe muitas outras perguntas em aberto para o leitor. Essa tal felicidade pelo prazer é o que define o controle social perfeito: pessoas satisfeitas não fazem revoluções, não queimam ônibus e não xingam no twitter. E caso fiquem propensas e abandonarem seus condicionamentos, há sempre a droga da felicidade socialmente aceita: o soma.
Vejam o que o próprio autor escreveu a George Orwell:
“Na próxima geração, acredito que os governantes do mundo descobrirão que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governo, que clubes e prisões, e que o desejo de poder pode ser tão completamente satisfeito sugerindo-se às pessoas que amem sua servidão quanto se elas fossem forçadas a obedecer na base de chicotes e pontapés.”
Num mundo do self made man, na sociedade de consumo contemporânea, nessa nossa sociedade do cansaço, onde o indivíduo vive explorado por si mesmo, defendendo o ponto de vista de quem empunha o chicote, acredito que Huxley acertou em cheio.
"Seu condicionamento estabeleceu trilhos ao longo dos quais ele deve correr. Ele não consegue evitar; está condenado a isso. Mesmo após a decantação ele ainda está dentro de uma garrafa: uma garrafa invisível de fixações infantis e embrionárias. Cada um de nós, é claro (...), passa a vida dentro de uma garrafa."
"Mas quando se começava a admitir explicações em termos de finalidade... bem, não se sabia qual poderia ser o resultado. Era o tipo de ideia que poderia facilmente descondicionar as mentes mais instáveis entre as castas superiores: fazê-las perder a fé na felicidade como o Bem Soberano e passar a acreditar, em vez disso, que o objetivo estaria em algum lugar além, em algum lugar fora da esfera humana atual, que o propósito da vida não era a manutenção do bem-estar, mas alguma intensificação e refinamento da consciência, alguma ampliação do conhecimento. O que era, refletiu o controlador, possivelmente verdade. Mas não, nas presentes circunstâncias, admissível."
(...)
"Que divertido seria, pensou ele, se não tivéssemos que pensar na felicidade!"
Terminada a leitura, há algumas perguntas, cujas respostas nos são essenciais:
- Felicidade seria algo intrínseco apenas à realização dos prazeres sensoriais? Seria apenas o bem-estar material?
- Onde haveria liberdade numa sociedade em que os indivíduos são condicionados e controlados pela realização imediata de seus desejos?
- Poderiam eles escolher não ter prazer? E, sendo condicionados a tal, por que motivos o fariam?
- Ser livre desse tipo de controle não seria de certa forma abraçar a vida em sua totalidade, inclusive a infelicidade, a dúvida, o medo e o desamor?
- Liberdade, portanto, não seria sinônimo de consciência?
“- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero poesia, quero perigo real, quero Liberdade, quero bondade. Eu quero o pecado.
- Na verdade - disse Mustapha Mond -, você está reivindicando o direito de ser infeliz.
- Tudo bem então - o selvagem disse, desafiador. - Estou reivindicando o direito de ser infeliz.”
Esse livro vai ficar na minha cabeça por muito tempo ainda.
"_ Por que não dá a eles esses livros sobre Deus?
_ Pela mesma razão por que não lhes damos Otelo: eles são velhos, são sobre Deus há centenas de anos. Não sobre Deus agora.
_ Mas Deus não muda.
_ Os homens mudam.
_ Que diferença isso faz?
_ Toda a diferença do mundo."