Alexandre Kovacs / Mundo de K 30/08/2017
Carlos Ruiz Zafón - O Jogo do Anjo
Grupo Companhia das Letras - Selo Suma de Letras - 518 Páginas - Tradução Eliana Aguiar - Relançamento no Brasil: 23/06/2017.
Se você gostou de "A Sombra do Vento", do mesmo autor, certamente irá adorar este romance que é o segundo da série sobre o Cemitério dos Livros Esquecidos, uma espécie de santuário onde cada livro guarda a alma de quem o escreveu e a alma daqueles que viveram e sonharam com ele. Um lugar mágico que protege os livros abandonados que ninguém mais lembra, livros que se perderam no tempo e aguardam para chegar às mãos de um novo leitor. Apesar de "O Jogo do Anjo" ser o segundo volume de uma tetralogia, pode ser lido de forma totalmente independente com alguns personagens em comum, como a família de livreiros Sempere, e as referências aos bairros e ruas da linda cidade de Barcelona além, é claro, da própria literatura que volta a ser um dos elementos centrais de toda a trama.
Talvez, devido ao grande sucesso do primeiro volume da série, Carlos Ruiz Zafón tenha decidido manter a mesma atmosfera de aventura e mistério de "A Sombra do Vento" permitindo-se, entretanto, avançar ainda mais no clima de fantasia por meio de uma trama original, violenta e cheia de reviravoltas. Poderíamos arriscar uma definição do estilo como sendo um policial Noir com toques de literatura fantástica ou sobrenatural. Na verdade, o autor foi tão ambicioso no argumento deste romance que ficamos imaginando todo o tempo, durante a leitura, como ele conseguiria resolver a sequência de enigmas, crimes e enrascadas em que envolve o seu pobre protagonista, impondo ao leitor um ritmo de ação cinematográfica, e chegar até o final do livro com um mínimo de coerência. David Martín é o infeliz protagonista e o próprio narrador de sua triste história que tem início quando presencia, ainda menino, o assassinato do pai, vigia noturno de um jornal, um homem atormentado pela pobreza e vícios, um ignorante que desdenhava do interesse do filho pela leitura — espancando-o por ler escondido "Grandes Esperanças" de Dickens — e que havia sido abandonado pela mulher.
"A boa sorte que meu pai tanto desejava nunca chegou. A única cortesia que a vida se dignou a ter com ele foi não fazê-lo esperar demais. Uma noite, quando chegávamos às portas do jornal para começar o plantão, três pistoleiros saíram das sombras e crivaram-no de balas diante de meus olhos. Lembro do cheiro de enxofre e do halo esfumaçado dos buracos que as balas tinham abrasado em seu casaco. (...) Naquela noite, os assassinos deixaram meu pai sangrando em meus braços e me deixaram sozinho no mundo. Passei quase duas semanas dormindo nas oficinas da gráfica do jornal, escondido entre máquinas de linotipo que pareciam gigantescas aranhas de aço, tentando abafar aquele silvo enlouquecedor que perfurava meus tímpanos ao anoitecer. Quando me descobriram, ainda tinha as mãos e a roupa manchadas de sangue seco. No começo, ninguém me reconheceu, pois não falei durante quase uma semana e quando o fiz foi para gritar o nome de meu pai até perder a voz. Quando perguntaram por minha mãe, disse que tinha morrido e que não tinha ninguém no mundo. Minha história chegou aos ouvidos de Pedro Vidal, a grande estrela do jornal e amigo íntimo do editor que, a seu pedido, ordenou que me dessem um emprego de contínuo na casa e que permitissem que eu ocupasse as modestas dependências do porteiro no porão, até nova ordem." (Pág. 41)
Não resta outra opção para o pequeno David Martín, tão cedo sozinho no mundo, do que sobreviver às custas do seu próprio talento, coisa que ele consegue subindo aos poucos na redação do jornal com a ajuda da sua paixão pelos livros até conquistar a oportunidade de escrever uma coluna semanal, uma espécie de folhetim policial de gosto duvidoso, mas que consegue obter extremo sucesso de público. Devido a intrigas de colegas invejosos do jornal pelo seu rápido progresso, ele é demitido injustamente e, antes de completar 20 anos, é contratado por uma editora sensacionalista para escrever "melodramas baratos", sob o pseudônimo de Ignatius B. Samson, em episódios mensais descrevendo o submundo do crime em Barcelona nos anos vinte com "retorcidas sagas familiares que escondessem meandros mais escabrosos e turvos do que as águas do porto".
Como nada é fácil para o nosso protagonista ele logo se torna profundamente infeliz com a atividade tão abaixo do seu talento e sofre uma desilusão amorosa, quando Cristina, o seu grande amor, se casa com Pedro Vidal, herdeiro do jornal e que o ajudou no início da carreira. Profundamente estafado e gravemente doente, vivendo em um antigo casarão abandonado, recebe um estranho convite de Andreas Corelli, um editor desconhecido, que lhe oferece uma quantia irrecusável, cem mil francos por um ano de trabalho, para escrever um livro que deveria criar uma nova religião, não do ponto de vista teológico formal, mas sim uma narrativa tão forte que transformasse a ficção em "verdade revelada". A aceitação desta tarefa, de objetivos nebulosos, irá iniciar uma sequência de crimes e assassinatos que envolverão David Martín como principal suspeito.
"Poesia à parte, uma religião vem a ser um código moral que se expressa através de lendas, mitos ou qualquer tipo de objeto literário, com o objetivo de estabelecer um sistema de crenças, valores e normas que sirvam para regular uma cultura ou uma sociedade (...) Tudo é um conto, Martín. O que cremos, o que conhecemos, o que recordamos e até o que sonhamos. Tudo é um conto, uma narração, uma sequência de acontecimentos e personagens que comunicam um conteúdo emocional. Um ato de fé é um ato de aceitação, aceitação de uma história que não foi contada. Só aceitamos como verdadeiro aquilo que pode ser narrado (...) Não o tenta a ideia de escrever uma história pela qual os homens sejam capazes de viver e morrer, pela qual sejam capazes de matar e deixar-se matar, de sacrificar-se e de enfrentar a condenação, de entregar sua alma? Que desafio poderia ser maior para seu ofício do que criar uma história tão poderosa que transcenda a ficção e se converta em verdade revelada?" (Pág. 117)
Carlos Ruiz Zafón soube mais uma vez criar uma história muito bem contada e que prende a atenção do leitor do início até o final, sem maiores pretensões do que o puro divertimento. Na minha opinião é ainda superior ao primeiro romance da série, "A Sombra do Vento", tanto do ponto de vista de originalidade da trama quanto da técnica narrativa. De qualquer forma, como citei na introdução, ambos podem ser lidos em qualquer ordem, sem prejuízo do entendimento, sendo este segundo volume cronologicamente anterior ao primeiro e terminando na Guerra Civil Espanhola. Uma grande homenagem a Barcelona e aos livros, muito recomendado para leitores compulsivos.