tbbrgs 30/12/2022
Biografia pelo avesso
Machado de Assis, mais uma vez, prova sua genialidade nesse romance que me cativou do início ao fim. Essa edição da Antofágica, particularmente, me chamou bastante a atenção pela qualidade dos textos críticos selecionados. Gostei em especial daquele intitulado "Quincas Borba: biografia pelo avesso?", do professor e pesquisador em Literatura Comparada pela UERJ João Cezar de Castro Rocha, em que ele faz uma análise bem interessante da obra, comparando-a com "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
Em síntese, o que ele diz é que, enquanto "Memórias Póstumas" seria uma "autobiografia pelo avesso", "Quincas Borba", por outro lado, seria uma "biografia pelo avesso". Ou seja, Machado, em ambas as obras, desconstrói os gêneros da autobiografia e da biografia.
Primeiro, em "Memórias Póstumas", ele cria a figura do "defunto-autor", contradizendo a ideia de que uma autobiografia deva ser escrita pela pessoa enquanto esta ainda é viva; pois, se ela escrevesse sua própria história ainda viva, poderiam ainda ocorrer fatos relevantes na vida dessa pessoa depois da publicação de sua história, mas que não iriam entrar para sua autobiografia definitiva, em vista de que esta já teria sido publicada. Assim, Machado esquematiza o "defunto-autor", aquele que escreve sua própria autobiografia depois de morto, conseguindo, dessa forma, compilar todos os fatos de sua vida numa única publicação.
Segundo, em "Quincas Borba", Machado escreve a biografia de um homem que enlouquece, o que, novamente, contradiz a ideia de que biografias somente dizem respeito a pessoas que obtiveram sucesso em suas vidas. Entretanto, quem é o protagonista desta biografia? Rubião. E qual o título que esta biografia recebeu? Quincas Borba. Assim, novamente, Machado nos pôs diante de uma contradição usada para desconstruir esse gênero.
"Ora, se a biografia, em seu recorte tradicional, acompanha uma trajetória exemplar num roteiro de consagração, 'Quincas Borba' narra, passo a passo, a desintegração de uma subjetividade; relata, episódio a episódio, a alienação de um sujeito; detalha, com evidente gosto, o processo de enlouquecimento de Rubião. E sempre em tom menor. [...]
A mediocridade de Rubião se instala inclusive no universo onírico: em lugar de imaginar-se Napoleão, o grande conquistador, imperador que se coroou a si mesmo, personagem frequente em asilos em todo o mundo, Rubião se satisfez com o irrelevante sobrinho, o malogrado 'Napoléon le Petit', na caracterização arrasadora de Victor Hugo.
A biografia em colapso de Rubião é o colapso mesmo do gênero biografia, pelo menos em sua forma tradicional. As pontas se atam: autobiografia e biografia são desconstruídas pioneiramente pela agudeza do leitor de Machado de Assis, que, em sua prosa, se apropria da tradição para melhor criticá-la" (p. 439 e 440).
Por essas razões, considerei a análise feita pelo professor muito interessante, por compreender outras interpretações não apenas de "Quincas Borba", como também de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", obras que, em vários sentidos, são muito semelhantes entre si.
Dessa forma, torna-se possível demonstrar como tais obras não se esgotam e estão sempre abertas a novos apontamentos, diferentes das questões habituais que cercam esses dois livros.
Consequentemente, posso dizer que "Quincas Borba" é uma obra atemporal, pois se adequa às principais problemáticas de cada época, permanecendo sempre atual e reverberando sua filosofia, seu humor ácido e suas discussões políticas únicas através das gerações de leitores e leitoras.