spoiler visualizaryokiitos 08/08/2021
A ironia de Quincas Borba e a meritocracia do Humanitismo.
Recentemente li O Presidente Negro do Monteiro Lobato, um livro extremamente desconfortável, ainda que necessário para entender um pouco de como, desde sempre, a sociedade é atrozmente estandardizada pela própria população. Não sei se isto é de conhecimento geral, mas eu só soube, após ler esse livro, que Lobato, além de apoiar e argumentar à favor de ideias darwinistas (em seu contexto mais chulo), também fazia parte do Movimento Eugênico, em meados de 1918. Acredito que, por conta disso, o autor soube colocar no papel uma visão menos fantasiosa do que era a eugenia em sua essência. Logo, ao ler sua referida obra, pode-se ter uma visão mais concisa de todo esse ideal racista, que sofria das mais fervorosas tentativas de difusão na política (isso porque já estava acomodada o suficiente nas concepções sociais antigamente).
No caso do livro de Lobato, todo o conceito de eugenia está bastante evidente, sem nenhum filtro. Já em Quincas Borba temos uma variação dessa ideologia, criada por seu homônimo, com uma concepção menos agressiva. A filosofia de Humanitas acredita que, para que o bem aconteça, necessariamente o mal deve acontecer também; e vice-versa. Para que um homem possa se alimentar, outro deve morrer de fome. Essa ideia se relaciona com a Eugenia e com o Darwinismo Social por defender que os mais fracos merecem seus malfadados destinos enquanto os mais fortes são dignos de seus triunfos.
"Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas."
Só cuidado para não interpretar errado. Não estou dizendo que Machado de Assis é racista, até porque ele mesmo era negro - ainda que um com muitos privilégios, se lembrarmos que ele viveu na época da escravidão. Apenas queria relacionar a filosofia Humanitas, inventada por ele, com a Eugenia, ideologia que começou a ganhar muito espaço no século XX, e continuou por muito tempo, resistindo, de forma um pouco mais enfraquecida, até os dias de hoje. Isso não aponta um possível racismo da parte do escritor, mas exibe a sua visão do mundo naquele tempo. É muito interessante ver a forma que as coisas eram tratadas antigamente. As pessoas concebiam conceitos espontâneos e de parca lógica e as adotavam como realidade sem se preocuparem muito com a veracidade dessas ideias. Por exemplo, não acredito que Quincas Borba, o personagem que apresentou Humanitas ao Rubião, seja uma pessoa ruim. Essa teoria que ele elabora tão detalhadamente não tem a ver com o seu nível de perversidade, e sim com sua visão de mundo. Inclusive, mesmo após explicar tudo minuciosamente ao Rubião, o mesmo não entende de verdade, e o reproduz equivocadamente no final do livro. Isso porque Rubião não enxerga as coisas exatamente como Borba, dificultando esse novo olhar à sociedade.
"Nossa, mas que resenha é essa que não fala nada sobre a história e já parte para uma análise sobre algo tão específico?" Desculpa, me empolguei bastante matutando sobre esse assunto que tive que escrever logo antes que fugisse da mente. Pois bem, apesar do livro receber o nome do moribundo filósofo, que não dura nem até a metade do enredo, o personagem principal de verdade é o Rubião, que se torna herdeiro universal do velho Quincas, ao seu falecimento, deixando de ser um mero professor e se tornando mais um capitalista. Com isso, ele se muda de Barbacena para Rio de Janeiro. Durante a viagem, ele conhece Palha e sua esposa, Sofia. Ao confessar que havia recebido uma inesperada fortuna, o recém conhecido, imediatamente, força uma conexão entre os dois, a qual é muito bem recebida por Rubião. Até porque, não é em Palha que seu interesse está direcionado, e sim em Sofia. O romance realista foca bastante nessa troca de interesses entre os personagens, evidenciando muito bem as intensões de cada um. Enquanto Rubião faz de tudo para ser correspondido amorosamente pela Sofia, seu marido, Palha, só pensa na fortuna do ricasso, chegando a ignorar os pedidos de sua esposa para que reaja apropriadamente aos xavecos insensatos que recebe de Rubião.
O livro é cheio de referências históricas, fazendo com que a leitura se torne um pouco densa. Felizmente pude ler na edição da editora Panda Books, que destaca e explica diversos pontos do texto, ajudando muito no discernimento da obra. Uma vez que você sabe o que está sendo dito pelo escritor, fica fácil notar toda a ironia inserida da história. Um bom exemplo é a relação entre os delírios de Rubião e a queda de D. Pedro II, no Brasil, e a de Napoleão III, na França. Ambos acontecimentos ocorriam na mesma época em que Machado escrevia o romance, dessa forma, a analogia entre o declínio de Rubião e esses episódios se tornou inevitável.
Sempre que leio alguma obra desse grande bruxo me surpreendo, mesmo sabendo da magnitude de seus trabalhos. Acho que por isso mesmo sempre me vislumbro. Entender que os livros de Machado de Assis são extraordinários é o primeiro passo para ser aluído pelas suas criações. É daí que sua popularidade em terras estrangeiras se funda. Pessoas do mundo inteiro leem Machado e se encantam. É algo difícil de se imaginar acontecer em lugares onde a cultura brasileira, tão presente em suas obras, não causa a mesma comoção que em nós. Entretanto, as palavras são capazes de reproduzir precisamente a vivência de seu escritor, seja onde for. E quando se trata de Machado de Assis, é como se seus livros fossem teletransportes que trazem gente de qualquer lugar do mundo à estirpe sui generis brasileira.
A obra foi publicada em folhetim na revista feminina A Estação entre 1886 e 1891, e acabou se tornando parte da Trilogia Machadiana, que além desse, também contém Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, obras que enriqueceram grandemente o Realismo no Brasil. Ainda não tive a oportunidade de ler Memórias Póstumas, mas, após descobrir que Quincas Borba é seu derivado direto, mal posso me conter para começar a leitura.