spoiler visualizarLucas Sam 03/05/2021
Desserviço
Este livro, apesar de tecnicamente bom e ter me feito devorá-lo até a página 317, mais especificamente, ele é um tremendo desserviço para a luta contra a prática do estupro e contra a impunidade para estupradores.
A autora basicamente apresenta uma bíblia de como desacreditar um estupro, reforça a ideia de que uma pessoa tão próxima, que viu a vítima crescer, jamais cometeria um crime tão horrível como estupro, faz parecer que tudo bem você não acreditar que um rapaz/homem tão bom estuprou uma menina porque todos merecem o benefício da dúvida, certo? Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado ano passado, 85% dos estupros no Brasil foram cometidos por pessoas próximas da vítimas, de familiares a amigos, namorados ou ex-namorados. A maioria acontece na casa da vítima.
Após a página 317 eu lutei bravamente para conseguir terminar o livro, porque meus olhos e estômago reviravam página após página. Depois de descobrimos que Saffie mentiu a autora escreve como se todos que desacreditaram em Holly e na inocência de Saul fossem criminosos da pior espécie, incluindo Saffie, que realmente havia sido estuprada, mas por outra pessoa, mas acusou Saul porque ela estava com medo de estar grávida e não queria dizer que era o verdadeiro abusador (outro ponto problemático: quando é constatado que a vítima realmente foi estuprada a primeira desculpa do acusador é dizer que qualquer um poderia ter feito aquilo, e que a vítima só tá acusando o estuprador porque quer se vingar/ele é o alvo mais fácil/quer destruir a vida dele ou qualquer idiotice do tipo).
Veja bem, o problema não é sequer fazer uma trama sobre uma falsa acusação de estupro, porque elas podem acontecer. Mas se fosse um livro sobre a luta de um rapaz acusado injustamente de estupro que tenta provar sua inocência enquanto a sociedade inteira, incluindo seus pais, amigos, irmãos e todos ao seu redor acreditam e apoiam a vítima, que é o correto a se fazer numa acusação de estupro, seria um livro mil vezes melhor e com um potencial muito menor de dar errado.
Mas não. O que acontece é que Saul possui um perfil muito parecido com incels (homens reclusos, com problemas de socialização e construção de relacionamentos que acreditam que, por serem homens, possuem direitos naturais de ter relações sexuais e, por não conseguirem isso do modo natural, desenvolvem ódio profundo a mulheres, a ponto de cometer estupros e feminicidios sem ressentimento algum), ao ser acusado age EXATAMENTE como um estuprador agiria, diz coisas que um verdadeiro acusado de estupro diria, possui um discurso muito usado por estupradores, mas a gente descobre que ele não é, e a forma como a história é construída quer levar o leitor a sentir pena daquele pobre menino, quer que o leitor se sinta culpado por tê-lo acusado, assim como Jules, Saffie, Pete e Rowan. Aliás, depois que o leitor descobre que Saul não estuprou Saffie, diferente do adolescente esquisito e agressivo do começo do livro, ele sempre aparece como uma figura amável, ingênuo, carinhoso e até compreensível, disposto a perdoar tudo e todos.
Semiótica. A partir do momento que personagem X é construído como um péssimo sujeito e, depois que é revelado que ele é inocente, todos os defeitos dele somem magicamente, e ele literalmente passa a agir como uma criança, e não um adolescente de 16 anos, a autora quer passar a imagem de que pessoas como ele jamais cometeriam um crime hediondo como estupro, portanto é um erro crer que caras legais também são estupradores.
São tantos desserviços ao combate ao estupro que eu não consigo listar nem metade deles, caso contrário tornaria essa resenha cinco vezes mais extensa. As três estrelas foram só porque é um livro realmente bem escrito teoricamente falando. Prende o leitor, não deixa pontas soltas, tem um enredo bom apesar de ser extremamente decepcionante nas últimas cem páginas, a ponto de me deixar enjoado e revoltado (no pior sentido, pois é possível fazer isso com finais excelentes, justamente por eles serem excelentes hehehe) ao mesmo tempo enquanto vou me aproximando do final.
Recado final: ao ser informado de uma acusação de estupro, não pense duas vezes antes de acreditar na vítima, por mais que o acusado seja da sua família, um amigo próximo, seja alguém muito religioso, ou muito gente boa, seja um professor universitário super renomado ou um encrenqueiro qualquer. Estuprador não tem cara, não tem jeito característico e nem existe um tipo de comportamento que seja de estuprador ou comportamento de inocente. Sempre acredite na vítima de estupro, pois se for uma acusação falsa o prejuízo sempre será menor para o falso acusado.
Lembre-se sempre do caso Mariana Ferrer. Lembre-se de João de Deus, Roger Abdelmassih e tantos outros acusados de estupro que mesmo com provas concretas que comprovam o ato, mesmo com filmagens, gravações e relatos de inúmeras mulheres, se nunca foram presos no mínimo estão em constante transição entre a liberdade, prisão domiciliar e regime fechado, sempre muito próximos da impunidade.