João Moreno 08/08/2021O comentário que virou resenhaComecei a assistir 'Laranja mecânica' em 2013. Se a minha memória não falha, havia, logo de cara, uma cena de espancamento e de estupro. Deixei de assistir, larguei pra lá, não é pra mim, não. Conversando com uma colega de trabalho, ela, que havia lido o livro e assistido ao filme, recomendou. "É muito bom. Sobre a ultraviolência? Olha, ela já foi normalizada pelos jornais policiais há anos...". Na época, não havia Whats App e eu AINDA não havia recebido vídeos de assassinatos com decapitação e etc. Sim, naturalizamos a ultraviolência e talvez, se pensarmos melhor, não dá para nos chocarmos com ela.
(Pronto, um argumento para a não-leitura já havia sido desfeito, vamos para o próximo).
Em 2015, já em outro subemprego, era domingo e o batente era das 9 às 19, R$ 40 o dia. Entre uma dose de cachaça e outra, pois trabalhava numa distribuidora de bebidas, levei o agora livro 'Laranja mecânica' para ler (domingos costumavam ser tranquilos, até ter que reabastecer o bar da esquina, frequentado por alcoólatras que bebiam Heineken e Itaipava Premium). Como ia dizendo, entre uma dose e outra, passei do prefácio e comecei, não muito animado. Li que o autor criara, a partir do idioma, aquilo que - também - caracterizaria a sua distopia: uma combinação de inglês com sufixos russos, mais uma linguagem ri(t)mada (para demonstrar a infantilidade dos personagens, adolescentes), e um padrão culto, que, vez ou outra, remetia a um idioma do século XVI. Sério, aquilo não colou. Na minha edição da Aleph, havia um glossário do que Burgess chamou de idioma "Nadsat". Depois de uma três página, ou seriam oito ou 10, lendo e buscando os significados do dialeto, abandonei. Não ia rolar. E eu troquei 'Laranja mecânica' por continuar servindo, mecanicamente, um bêbado qualquer.
Em 2021, ontem ou antes de ontem, eu precisava de um livro curto: calhamaços (leia-se, aqui, qualquer livro com mais de 400 páginas) e séries ainda me assustam. Nesse sentido, não tive escolha: tentei pela terceira vez.
Aqui, algumas observações específicas sobre a leitura: sobre o idioma "nadsat", tive que criar vergonha na cara. Ou eu me adaptava com o estilo do autor para o romance ou eu deixaria de ler um dos "cem maiores romances ingleses" escolhidos por uma revista qualquer. Foi igual a Saramago: é melhor adaptar-me à escrita do comunista a deixar de ler seus livros, que são do [*****], descobri mais tarde. Voltando ao Nadsat, depois de um tempo, o cérebro se acostuma. E como era desejo do autor certa confusão, estranhamento, recorrer ao glossário, ao final, a todo o momento, talvez sirva apenas para tornar a leitura desinteressante.
Quanto à ultraviolência, até a página 60, parecia-me que seria apenas isso: espancamento, estupro, espancamento, roubo etc etc. E não foi tão legal. Dali pra frente, o livro, que é dividido em três partes, muda. O que mais gostei é que, mesmo o personagem principal continuar a ser um arrombado até o fim, o autor consegue nos colocar, ou melhor, fazer-nos sentir alguma empatia por ele. Também não há pontas soltas: personagens, por mais irrelevantes que possam parecer, reaparecem, dando uma sensação de 'ciclo que se fecha', não sei. Como pano de fundo, há aquela velha discussão que permeia um liberalismo a-histórico: a velha liberdade (abstrata) em detrimento do Estado autoritário, que se transforma numa caricatura (e numa distopia poderia ser diferente?).
Por fim, oito anos depois da minha experiência com a laranja mecânica, gostei, muito.