legarcia 27/07/2023
O que eu desejo ainda não tem nome
Enfim tive o privilégio de ler o primeiro romance de Clarice. Posso dizer que essa leitura, talvez mais do que qualquer outra, foi uma viagem que pude experienciar a lugares mais profundos. O livro foi meu companheiro por muitos dias e, toda vez que abria-o para ler mais um capítulo, sentia-me alimentada, como se estivesse nutrindo minha alma.
Nesse romance de estreia, Clarice já estabelece temas que serão recorrentes durante toda sua obra, como a questão fenomenológica, a qual evidencia o intercâmbio entre a materialidade exteriorizada e a interioridade humana, mediado pela tentativa de apreensão do fenômeno. Dessa forma, o que importa aqui não é o indivíduo no mundo, e sim a intermediação entre o mundo e o indivíduo.
É muito caro à Clarice os momentos epifânicos, os quais instalam-se como em um fenda no tempo e espaço, rompendo a casca da aparência do cotidiano. Em tempo de relógio não se passam muitos minutos, mas em tempo de consciência é o bastante para a personagem observar um aspecto da realidade de maneira profunda.
Nessa obra, então, somos conduzidos pela vida de Joana, que está sempre em um não lugar, sempre inadequada. Joana percebe-se mulher, mas não é o que a sociedade espera dela. Por meio de passagens em diferentes momentos de sua vida, podemos perceber que a personagem principal não está em sintonia com quem deveria ser sua aparência social.
Acredito que uma das grandes questões de Joana seja que ela possui essa necessidade de se limpar dos conceitos já concebidos pela sociedade para buscá-los por conta própria. Só que a complexidade se dá quando ela se sente sozinha e perdida, uma vez que procurar e refletir sobre tudo é quase impossível e gera essa náusea.
Acontece que Joana também se depara com o absurdo do mundo, à la espanto sartreano. Ela está sempre rondando, sempre chegando perto do coração selvagem, mas nunca chegando nele em si, nem ao menos consegue compreender em totalidade o que ele seja. Essa impossibilidade de apreensão e de compreensão da realidade gera um mal estar contínuo na personagem.
Apesar de Joana ser uma mulher que procura sair das aparências e mergulhar na vida, somente só sente-se livre, pois, quando está com outras pessoas, sente vontade de agradar. E esse elo com a sociedade a prende e a faz sentir que vive menos do poderia, angustiando-a. Ela não consegue romper com a sociedade, pois esta faz parte da condição humana, que intrínsecamente limita o espírito, ao mesmo tempo que é o que nos permite viver e experienciar a vida.
E assim percebemos que com apenas 23 anos, Clarice Lispector publica uma obra infinita, que não seria capaz de esgotar nem em mil textos. Cada frase abre tantos caminhos para serem seguidos, cada dúvida engatilha outra e dessa forma somos instigados a buscar rodear o coração selvagem da vida, assim como fez Clarice durante todos os seus anos.
27/07/23