spoiler visualizarHumberto Serrab 16/08/2021
Uma coluna do espírito humano
Considerada a obra-prima do talentosíssimo escritor russo Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov foi escrito em 1879, dois anos antes da morte do autor. Como ocorre costumeiramente com os grandes clássicos da literatura, não é possível apresentar todas as perspectivas que a obra revela de uma só vez. Uma leitura rígida pode macular a variedade de interpretações possíveis. Trata-se de um trabalho de vulto que abrange temas como a vida de fé em contraste com a razão, a criação dos filhos, o ambiente familiar desestruturado, o remorso da consciência diante das consequências do pecado e muitos outros assuntos que – de maneira lúcida e ordenada – são arranjados sob a escrita do gênio Dostoiévski. O ponto que mais me chamou a atenção, entretanto, tocou na questão do livre-arbítrio. Falaremos a partir dessa perspectiva, a qual me parece mais abrangente para o entendimento do escopo da obra.
Tudo começa a partir da descrição de uma família no interior da Rússia. Essa família tem como patriarca a figura de Fiódor Karamázov, um velho na casa dos sessenta anos que jamais se furtou de quaisquer prazeres que o mundo é capaz de proporcionar. Amante do álcool, da jogatina e, principalmente, das mulheres, o velho Karamázov nunca pensou duas vezes antes de colocar a satisfação dos seus desejos antes do cumprimento das obrigações. Casou-se com uma herdeira de propriedades e teve um filho, chamado Dmitri (durante o livro ele também recebe o apelido de Mítia). Sem paciência para acompanhar de perto o desenvolvimento de uma criança, Karamázov furtou-se à condição de pai presente para entregar-se aos prazeres, alguns desfrutados inclusive na presença da mulher. Como a propriedade do casal transformou-se em uma espécie de bordel com festas ininterruptas, a esposa definhou em tristeza até falecer. O menino Dmitri foi inicialmente criado por um casal de caseiros sem filhos, sendo mais tarde remetido ao convívio de parentes em uma cidade distante.
Não satisfeito por ter destruído a vida da esposa, o velho Fiódor contraiu novo matrimônio, agora com uma moça de saúde frágil cuja família era muito respeitada pela comunidade local. Teve mais dois filhos, nesta ordem: Ivan e Aliócha. Diante da continuidade da vida embrenhada no prazer mundano, a segunda esposa também não aguentou a pressão e morreu prematuramente em desespero. Fiódor remeteu os dois meninos, pacotes indesejáveis, à criação de parentes.
Mal falado pela cidade como irresponsável contumaz, o velho Karamázov ainda deu-se ao trabalho de engravidar uma moça da cidadezinha dotada de problemas mentais. A desconfiança popular em torno das peripécias do velho tarado cresceu ainda mais quando se soube que a dita cuja, na véspera do parto, escalou a parede externa do casarão e pariu um menino no banheiro do segundo andar, vindo a morrer durante o trabalho de parto. O menino, chamado Smierdiakóv, acabou sendo criado dentro da propriedade sob os cuidados dos caseiros Grigori e Marfa. Epiléptico, o pequeno Smierdiakóv tornou-se o cozinheiro da casa quando chegou à maioridade, mas sem nunca ver a paternidade reconhecida por Fiódor.
A trama se desenrola quando, mais de vinte anos depois, Dmitri e Ivan chegam à cidade para um encontro com o pai. Dmitri Karamázov queria que Fiódor lhe antecipasse em dinheiro a sua parte da herança. Fiódor argumentou no sentido de que nenhum tostão seria dado ao filho mais velho, posto que a parte devida da herança já havia sido antecipada nas constantes remessas de dinheiro que o velho fizera a Dmitri ao longo dos anos. Em certo sentido, Dmitri Karamázov era uma cópia do temperamento impulsivo do pai: gostava de bebidas, jogo e envolvimento com mulheres. Aliás, era capaz de gastar todo o dinheiro que tinha em uma única noite de bebedeira. Executor de atos irresponsáveis, Dmitri ainda conservava algum traço de sanidade ao reconhecer-se como falho e pecador. Iniciou carreira no Exército, mas não galgou hierarquias superiores, vindo a se reformar (aposentar) da instituição por motivos pessoais.
O filho do meio, Ivan Karamázov, começava a dar passos sólidos na direção da carreira como intelectual. Havia escrito um longo artigo sobre a função da Igreja Ortodoxa como freio moral da sociedade. Para Ivan, a religião não apresentava conteúdos reais, embora servisse como média moral a partir da qual as pessoas controlavam o comportamento no convívio social. Essa visão materialista havia ganhado repercussão nos meios pensantes russos, dando a Ivan uma posição no debate público. Ateu convicto, Ivan entendia que a ideia de Deus fora construída pelos homens para manter o controle da sociedade nas mãos dos poderosos, de modo a evitar arroubos de rebeldia por parte dos desvalidos. Sendo assim, todas as noções morais de bem e mal não passavam de barreiras de proteção cujo objetivo era o de defender a riqueza de alguns ao arrepio do sofrimento da maioria. Ivan era a típica figura do revolucionário niilista que acreditava apenas na força da ação humana como fio condutor da História. As ideias de Ivan desembocavam na óbvia conclusão de que todos os atos eram permitidos. Não haveria convenções a respeitar, sejam no ambiente familiar, religioso e moral. O mundo dos homens não passava de uma mentira ideológica construído para tapear os pobres em benefício dos ricos. Articulado como poucos, os discursos de Ivan exerciam magnetismo no círculo de convivência do pai, sobretudo no jovem Smierdiakóv, o qual passava horas refletindo sobre as sentenças de Ivan enquanto trabalhava à beira do fogão.
O terceiro filho, Aliócha, permaneceu na mesma cidade de origem, ao contrário dos outros dois irmãos. Voltado para a meditação espiritual, o pequeno Aliócha tornou-se seminarista no mosteiro local. Queria entregar a vida à consagração das questões espirituais. Era sólido moralmente e extremamente justo na consideração dos temas. Admirado pela cidadezinha como sábio, o jovem Aliócha tinha um espírito que destoava tanto do pai quanto dos irmãos mais velhos. Em determinada passagem da narrativa, Dostoiévski observa que o jovem seminarista era um tipo tão confiável que poderia passar a vida sem um tostão sequer: ninguém lhe negaria abrigo e alimento nos momentos de necessidade. Aliás, dos três irmãos apenas Aliócha atravessa a narrativa mantendo-se na mesma integridade de comportamento do início ao fim, muito embora se observem algumas mudanças na vida do personagem.
No meu entender, a questão do livre-arbítrio aparece como central no romance. Oriundos de um mesmo ambiente familiar desestruturado pelo comportamento do velho Karamázov, cada irmão escolhe traçar de modo distinto o rumo da sua própria alma. Cada um deles tem traços distintos de personalidade. Cada um deles escolheu abraçar uma visão da realidade, tornando-se únicos no carisma, mesmo que saídos de uma mesma origem. Dmitri em nada se parece com Aliócha, o qual poucos pontos de convergência mantêm com Ivan. Dmitri abraçou um modo impulsivo de lidar com o mundo, revelando-se como escravo de prazeres momentâneos. Mostra-se capaz de gastar num momento de embriaguez um dinheiro que não lhe pertence e até mesmo esbofetear o próprio pai num instante de raiva. Já Ivan, orgulhoso da própria inteligência, se satisfaz quando influencia pessoas que não são capazes de acompanhar as nuances do seu raciocínio. Apenas Aliócha mantém-se alerta o suficiente para escutar as pessoas, aprendendo com elas e tentando compreender o ponto de vista de cada um com enorme empatia. Esse amor pelo próximo se manifesta até mesmo nas conversas com jovenzinhos inexperientes que se consideram maduros, como é o caso do pequeno Kólia. O modo como cada irmão enxerga a vida, e se conduz nela, cativa o leitor enquanto percorre as páginas.
O argumento dramático central da narrativa se desenvolve a partir do assassinato do pai Fiódor Karamázov, dentro da própria casa. As suspeitas logo recaem sobre os ombros do irmão mais velho, Mítia, o qual andava pela propriedade no momento da morte, animado em cobrar a dívida em dinheiro que o velho lhe tinha. O desenrolar do julgamento parte da conclusão de que Dmitri é de fato o parricida, mas logo envolve o leitor em uma teia de pontos de vista distintos, todos verossímeis. Enquanto a retórica anda à solta durante o julgamento, fica cada vez mais difícil asseverar com conclusão se o filho mais velho teve a capacidade de tamanha monstruosidade ou não. As testemunhas, extremamente envolvidas na história da família, depõem com emoções afloradas. Não raro trocam o teor dos depoimentos quando mudam a forma de olhar para o réu. O que se tem ali nas páginas que tratam do julgamento é um estilo de narrativa e argumentação encorpados com muita imaginação.
Os Irmãos Karamázov é um dos livros mais belos que já li. Um livro cujos personagens parecem familiares, de personalidades profundas e multifacetadas. Otto Maria Carpeaux disse uma vez que Dostoiévski era o mais universal dos escritores russos. Acrescentaria um palmo de tijolos na construção do mestre austríaco: diria que todas as famílias do mundo se parecem, de algum jeito, com os Karamázov.