Lola444 09/06/2021Só tenho uma coisa pra dizer: MINHA NOSSA!"A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem qualquer significado." - William Shakespeare
Essa frase serviu de inspiração para Faulker nomear "O Som e a Fúria", e eu já vi poucos livros combinarem tanto com seus títulos como esse. Para início de conversa, não é um livro fácil, o primeiro capítulo é um desafio enorme para o leitor, nosso primeiro contato é pela narração em fluxo de consciência de Benjy, um dos filhos da família Compson, que nasceu com deficiência cognitiva, portanto nem ele próprio entende o que está ocorrendo ou a linha de seus pensamentos, imagina nós, meros leitores. Até então, não sabemos quem é quem, não sabemos quando acontece o que, nos perdemos no espaço-tempo, e isso é proposital, provavelmente o capítulo vale uma releitura, pois após termos conhecimento do todo deve ser bem mais fácil interpretar as pequenas migalhas narrativas entregues por Benjy.
Quando enfim inicia o capítulo de Quentin, as coisas se tornam menos obscuras (embora ainda permaneça no fluxo de consciência), o capítulo narrado por ele, apesar de ainda entregar imprecisão na linearidade (o que é característico), Quentin traz pensamentos mais lógicos, daí conhecemos melhor a família Campton e o caminho derradeiro de sua decadência, mas principalmente, tomamos conhecimento sobre a estranha relação de Quentin com sua irmã Caddy.
Para mim ficou muito claro o sentimento incestuoso que Quentin tinha por ela e, NA MINHA INTERPRETAÇÃO, em algum nível, ela também retribuía (afinal, ela nomeou a própria filha em homenagem a ele). O problema é que Quentin tem uma obsessão absurda pela pureza da menina, uma questão de honra, que se torna até contraditório em alguns pontos, pois ele se mostra disposto a tomar atitudes absurdas para "proteger o bom nome da família" ou para manter ela junto dele.
Bom, Quentin claramente tem algum transtorno psíquico, como depressão ou algo do tipo, na narrativa nós percebemos o quão cônscio ele é da própria sombra que parece mais uma presença que o persegue, eu não sei isso é uma metáfora para uma escuridão/opressão/desânimo/desespero que está sempre com ele, mas foi assim que eu entendi. Também o autor deixa claro o quanto ele teme a passagem do tempo, em vários sentidos, tanto perder tempo quanto não ter tempo a perder, contudo este se mostra implacável, isso é demonstrado no episódio do relógio que seu pai lhe deu (que pertenceu ao seu avô) e o rapaz quebra o vidro e os ponteiros, porém o tic tac não para - pela minha interpretação isso fez Quentin se sentir ainda mais impotente em relação a tudo que o cercava - a degradação financeira e moral da família -, e ele, sempre tendo sido o filho mais sensível, tinha maior dificuldade para suportar. Sentia vergonha, tristeza e uma certa apatia pela vida, como se nada pudesse mais o trazer de volta daquele estado de certeza da miséria... além de toda a questão da irmã, que é o pensamento mais presente nas suas reflexões, o fato de Caddy não ser mais virgem, de ter se casado, estar longe dele, parecia intolerável. Eu associo muito também essa implacabilidade do tempo ao título da obra, não sei se tem a ver, mas essa violência com que o tempo passa e com ele a família vai afundando cada vez mais me remete a essa fúria que os próprios rabiscos da capa também parecem querer apontar.
Então falemos de Jason, o irmão mais novo (tirando Benjy) e mais desprezível, bajulado pela mãe completamente fraca e incapaz, sempre considerou Jason o único dos filhos que havia puxado para ela, o único digno, morria de vergonho dos outros, é totalmente submissa ao filho e se faz de cega para sua perversidade. Acho que a melhor palavra para descrever Jason é cruel, talvez englobe tudo que ele é, ainda que não com a devida intensidade. O rapaz cresceu extremamente amargurado e rancoroso pelo fato de que o resto das terras da família foram vendidas para custear os estudos de Quentin em Havard e o casamento de Caddy, enquanto ele ficou preso a casa, tendo que trabalhar em uma pequena loja, sustentando os empregados, a mãe e a sobrinha. Jason é extremamente prático, frio e com um ego maior que ele, ego esse alimentado pela mãe, acredita merecer mais, e carrega profundo rancor de tudo e todos por estar na situação que está, fora isso, ele é um homem preconceituoso ao extremo, trata negros e mulheres da pior forma possível, ele é tão perdido na própria ideia de que ele é melhor que tudo ali que na sua cabeça todas as barbaridades que ele pensa são quase que construídas com arrogância, até orgulho, de pensar daquela forma abominável. A única pessoa que ele temia era Dilsey (minha personagem favorita), provavelmente porque ela era a única que enxergava ele do jeito que ele era.
Por último, vou ressaltar o papel de Dilsey nessa história, ela era a empregada negra da família e sua família toda também servia a eles, nunca os abandonou nem nos piores momentos, não era bem tratada por nenhum dos Compson remanescentes, mesmo assim tentava fazer o melhor, mesmo idosa e cansada, permanecia, resistia. Esse personagem é o significado de força, resiliência e bravura, o coração dela é imensurável, para mim é a heroína da história. Em diversos momentos o livro consegue mostrar essa dureza misturada com afabilidade, a ignorância atrelada a uma bondade tão visceral que ela chega a se anular, Dilsey vive para os Compson, e o parece fazer quase de bom grado, diferente dos filhos que reclamam do trabalho, ela parece aceitar aquele "papel" e se importa de verdade com aquela família que dispensa a ela um tratamento tão indigno. Acredito que a intenção de Faulkner fosse passar essa força, essa ideia de resistência e que, no final das contas, é esse tipo de gente que move o mundo, que permanece, que perdura.
Enfim, se eu for falar de todas as passagens, metáforas e possíveis interpretações do livro que valem a pena serem mencionadas eu vou escrever um outro livro hahaha... Então é isso, o livro não conta uma história linear, ela se passa em 4 datas específicas, cada uma com suas particularidades, sem a típica narrativa crescente das formas mais usuais de literatura, cada personagem é um universo, cada capítulo tem seu núcleo, e conseguimos enxergar situações de diferentes pontos, as vezes se somando e as vezes se contradizendo de acordo com o ponto de vista diferente.
Bom, para mim foi uma experiência LOUCA, eu realmente gostei, me sinto muito feliz de ter lido e sobrevivido ao fluxo de consciência (que sempre tive medo de encarar hahaha), Faulkner foi muito ousado e desafiou o leitor a embarcar nessa história sem início, meio e fim propriamente ditos, apenas cheia de som e fúria, assim como é a vida. Definitivamente, é um desafio que vale a pena enfrentar!