Michelly 06/06/2022A cicatriz de Notre-Dame, a corcunda de ParisA princípio é complicado distinguir qual a melhor opção para a tradução do próprio título, uma vez que a opção "O corcunda de Notre-Dame", remete-se a Quasímodo, já "Notre-Dame de Paris? centraliza-se na própria Catedral. Em minha opinião, o título deveria fazer jus a própria Notre-Dame, personagem primordial, eixo de onde são construídas todas as relações, conflitos. Destacando todas as menções feitas pelo autor da importância de sua arquitetura, Notre-Dame é começo, meio e fim. Estrutura do romance, objeto da composição do conflito.
Ainda assim, penso que Quasímodo, com sua estrutura grande, suas deformações físicas e cicatrizes diversas, sejam, a um só tempo, a própria transfiguração da grande Igreja. Uma espécie, talvez, de analogia, alegoria, mesmo trágica metáfora. Diante de tantos despojos no qual a catedral se submeteu conforme a passagem do tempo, não me surpreende que esteja refletida a sua imagem na própria figura de Quasímodo. Talvez nisto encontre-se a genialidade de Victor Hugo, fazer de um objeto inanimado, animado. Isto que penso não parece estar tão distante da realidade, basta que compreendamos em algumas passagens que Quasímodo chega a ser pensado por Victor Hugo como parte de Notre Dame, coração da mesma. Em essência e a própria aparência.
Distante um pouco da figura do grotesco, da pessoa de Quasímodo; cenas, mais ou menos feito crônicas vão se desenrolando no decorrer da história. Sabemos que a narrativa é construída no séc. XV. O cotidiano, a cidade, personalidades diversas (clero, aristocratas, burgueses, mendicantes), são narrados com desenvoltura, não destituídos de sua natureza cruel, sádica, circunscrita a um estado de menoridade intelectual e moral. São essas figuras que, bem localizados em cenários e cenas diversas, são apresentados dentro de uma rede em que, aparentemente, a natureza humana toma sua forma. É, mais ou menos, nesse entorno de confusão que a história de formação cultural da Paris do séc. XV. se apresenta ao leitor. Cenários que, diante da opulência de referências, não sabemos mais identificar o que é real de ficcional.
São diversos os objetos, diversas as perspectivas a serem decifradas minuciosamente. De fato, o que Victor Hugo nos traz é um universo de questões. Não me surpreende a miríade de trabalhos sendo feitos, em diversos idiomas, cotidianamente, de suas obras. Aconselho imensamente a encarar o desafio dessa leitura como uma aventura. São vários os vaivéns. Diversos os personagens, inúmeros são os tormentos enfrentados, mesmo causados. Mas a história, como nos diz Benjamin, precisa ser passada contrapelo, e, este clássico de Victor Hugo, apesar de seus bons séculos de vida, não deixa a desejar em sua atemporalidade.