Victor Dantas 19/01/2021
“A Peste” em tempos de Corona Vírus. #36
Quando a realidade escreve a ficção.
Já dizia Milton Santos, que para compreender qualquer fato social é necessário, sobretudo, considerar a totalidade, sendo esta marcada e expressada em tempos e espaços distintos, e produzida a partir do sistema de objetos, técnicas e ações.
Dito isso, ao se deparar com a realidade do ano de 2020, em que eclodiu a pandemia Covid-19, muito se discutiu além dos efeitos e consequências, os valores humanos, individuais ou coletivos, que foram colocados em cheque diante da realidade atual. Uma das vertentes que foram utilizadas para fazer a leitura desse momento, foi a Arte. A arte como um todo.
Sendo assim, a arte literária, foi uma das mais utilizadas, principalmente a ficção, em destaque para as obras de ficção científica e as obras distópicas. Nós recorremos a José Saramago, com “O Ensaio sobre Cegueira”, nós recorremos a Gabriel García Marquez, com “O Amor nos tempos do Cólera”, ao Albert Camus, com “A Peste”, e dentre obras que trataram de discutir sobre flagelos e a crise da humanidade.
Eu, particularmente, recorri a obra de Albert Camus. Tomo agora a liberdade de fazer uma análise não só da obra em si, mas tentar a partir dela fazer uma leitura (pessoal) da realidade, em qual eu também estou vivenciando.
Publicada em 1947, “A Peste”, trata-se de uma obra alegórica onde o Albert Camus discute, metaforiza e associa a invasão das tropas alemãs na França, durante o período nazista, com uma epidemia que assola a cidade de Orã na Argélia, sendo este o enredo principal da obra.
A filosofia aqui inserida é a do absurdo. Pensamento central do Camus que inicia em “O Estrangeiro” (1942), e está presente em toda sua obra. No entanto, em “A Peste”, o Albert Camus insere uma nova ideia: o absurdo é universal.
O núcleo principal de personagens é formado por: Rieux, o médico; Tarrou e Rambert, os jornalistas; Joseph Grand, funcionário público.
Narrado em 3ª pessoa, e aqui destaco o quão perspicaz é o narrador dessa história, somos apresentados inicialmente, a cidade litorânea de Orã na Argélia, que segundo o narrador é “uma cidade comum e não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina” (pg. 9).
É importante lembrarmos que a Argélia foi colônia francesa durante décadas, e só teve sua independência declarada no ano 1962, tendo sido antecedida pela Guerra Argelina (1954-1962).
A partir daí, acompanhamos o cotidiano do médico Rieux, que tem uma rotina comum a todo profissional de saúde. Um dia, ao sair do seu apartamento em direção ao hospital, Rieux se depara no corredor com um rato morto.
Esse acontecimento, causa uma inquietação no médico, quando ele percebe que nas ruas da cidade, as pessoas começam a comentar sobre a incidência repentina de vários ratos mortos, tanto dentro de casa quanto nas calçadas.
Os ratos tomam a cidade. A situação se torna alarmante quando, em uma semana mais de 6 mil ratos são encontrados mortos, e incinerados pela a vigilância sanitária da cidade, mas a coisa não para por aí.
Dias depois, começam a se manifestar na cidade casos de febres, vômitos, furúnculos e manchas no corpo.
Como toda epidemia é precedida de dúvidas, ceticismo, tanto por parte dos governantes quanto da população, os casos vão aumentando gradativamente até que se instaura na cidade o estado de pânico entre a população.
O pânico se torna uma realidade. Os casos se tornam uma epidemia.
Declara-se estado de Peste. Quarentena.
E é partir disso que a história se desenrola, e tudo acontece. Entramos em contato com o caos, a crise, o medo, o egoísmo, a morte... o absurdo.
A cada página que eu virava eu me deparava não só com a sociedade de Orã, mas com a sociedade do mundo, do Brasil. Eu me deparava não só com a Peste de 1947, mas com a pandemia Covid-19 de 2020.
É assustador e ao mesmo tempo incrível, como a arte consegue capturar e externalizar a realidade de uma forma muito palpável, sensitivo, a ponto de fazer com que a gente confunda, ou melhor, una a arte e realidade, em uma dimensão “transliteral”.
Muitos disseram que o Albert Camus foi visionário, e talvez tenha sido realmente, no entanto, ao meu ver, ele foi visionário não por prever uma peste, afinal, estamos falando de uma obra alegórica, mas visionário por compreender e criticar uma sociedade regida pelos interesses individuais, pelo fetiche do poder, pelo darwinismo social, e ao final, fazer uma síntese de que em tempos de crise e falência da humanidade a peste é social, muito mais que sanitária.
“Havia os sentimentos comuns, como a separação ou o medo, mas continuavam a colocar em primeiro lugar as preocupações pessoais. Ninguém aceitara ainda verdadeiramente a doença. A Maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava os seus hábitos ou atingia seus interesses. Impacientavam-se, irritavam-se e esses não são sentimentos que se possa contrapor à peste. A primeira reação, por exemplo, era culpar as autoridades” (pg. 77).
Ao ler essa obra em janeiro de 2021, no meio de uma pandemia que já completa 1 ano, inserida em uma sociedade higienista, materialista, excludente e individualista, em qual debate central tem sido “salvar vidas ou salvar a economia?”, pude perceber que ideia do Albert Camus ao dizer que “O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância...” (pg. 125), é mais que verídica. É expressiva. Vivida.
Por fim, finalizo com uma citação dentre as inúmeras que essa obra possuí, e que nos leva a reflexão:
“O que é natural é o micróbio. O resto – a saúde, a integridade, a pureza, se quiser – é um efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais se deter” (pg. 236).
Leia. Confronte-se.
Playlist inspirada no livro:
We Never Change - Coldplay
Epiphany - Taylor Swift
To Be Human - Marina and Diamonds
Chained to the Rhythm - Katy Perry
Hard Times - Paramore
When the World Was At War We Kepting Dancing - Lana Del Rey